16.4.14

Blanche 51: Cabeça de leitoa

Em Riolama, a sineta da capela lecionada por Karly, de súbito ressoa com reboladeiros repiques. É tardinha de sexta-feira, já com a boca da noite desapressada a domar o mundo.
Nick, coadjuvando Blanche na montanha dos caprinos, transfigura-se em atônito sobressalto. Retira do fogo um tição alaranjado e vai chupando devagarinho a palha. A cusparada no terreiro escarra também sinistros pensamentos. Não  desfita a Vila, enlevado pelo rebate afligido: "Blém, blém, morreu alguém / Blém, blém, morreu alguém"...
Um de seus rúpteis enfermos teria cruzado inapelavelmente o trespasse? Qual deles, ou nenhum? Será decesso súbito, qual escanzelada garotinha picada por cobra encastoada, na recolecção de ovos duma moita erma?
A gélida noite já na chegança volteando em luta com o crepúsculo, céu de vidro apinhando-se em brilho e a dupla arremata o almojantar introspectivamente, todavia especulando sequiosa sobre o suposto sucumbido. Tom, habitado por alargada brandura, quiçá assoprará a notícia sobre o funeral, no broto da manhãzinha. 
Sendo Nick quase psicagogo, sai em campeação aos combalidos com Reverendo Albert, outorgando cada enfermidade e apontando possíveis tratos com ervas medicinais, para adoçar um destino rumo ao mistério, unidirecional e irreversível.
E sucedeu-se: o arriar do negrume revela Tom, assim quase jogado, despontando pela trilha tortuosa, deixando evaporar um rastro de poeira. Quando o tropel já se faz sentir, Nick, brigando com seus eus, aligeira-se até a porteira em arquejo inexprimível.
Quem sucumbiu foi Gerrah, uma enigmática anciã sua abroquelada, supostamente com 104 anos. Supõe-se, pois não portava documentos, contudo deu entrada à antiga capela aos possíveis 16 anos, bem mulher e de coração quente, quando casou-se, após fuga, com um frondoso índio desgarrado.
Foi um dos primeiros conjúgios de Riolama, a exatos 88 anos, tendo o avô de Nick por pastor provisório... a família angariou gleba de terras sem franquia de confiança, quando os silvícolas ainda eram consternadamente retirados, encolhidinhos de silêncio. 
O simplezinho e árido torrão, num vazio escandecido, é o mais próximo da cidade de Corda Bamba, enrodilhado na curva fechada do leito carroçável. Desde então, Gerrah vive em presença pura na caverna indígena, de janelas cegas.
O casamento? Não vingou. Na noite de núpcias, de frio cortantezinho, acomodados numa gruta bem acima, onde o pai da noiva fez questão de demarcar território, algo desandou.
Gerrah retorna com expressão de nunca mais, soqueando a noite fechada com seu pouco peso, espalmando a porta da caverna nuns gritinhos assim de dó. Quando a irmã mais velha abre, a pega ensanguentada pelos espinhos da capoeira, apavorada no grosso escurão da noite.
No seguido, acomodada à maciez de sua antiga esteira, passa o restante da noite enganchada à irmã (madrinha), nuns finos fôlegos tiradinhos qual água de poço.
Ao alvorecer, com plácidos ânimos, a Dinda, nos jeitos repletos de brio, lhe indaga em bonança. Na resposta, a determinada nubente farfalha chuviscando voz alastrada:
_Creioendospadre, Madrinha, num é que aquilo se parecia com uma cabeça de leitoa?
Dinda, já casada e vivendo nos comuns, com perspicaz sapiência, sentiu por bem colocarem uma indigerível pedra por sobre o escrupuloso assunto.
O índio escalavrado, após dias amassado em pouco caso, todo ele deixa a caverna e segue com um grupo rumo à reserva. O miolo da manhã deslizava manso a enobrecer-lhe o ânimo.
Com o escorregadio do tempo, o pai viúvo finda-se, deixando de rebotalho na gleba o casal Dinda e Peo, mais as três invulgares solteironas: Gerrah, Cecil e Hit.
Um a um, em desmande do destino aos baques vibrantes, foram fechando a noite dentro de si, e enterrados na volta do jatobazeiro, que sombras, almas  e frutos esparrama intermitantemente no terreiro pedregoso.
A Dinda, tal qual a mãe precocemente finada, foi exímia benzedeira, atributo delegado a Gerrah em ritualística profecia no leito de morte, rindo desusada risadona profunda e grave.
A técnica benzística consistia em pronunciar expressões mesmeiras perante o enfermo, que iam sendo ecoadas a cada machadada, desferida implacável e intercaladamente nos lados do portal de entrada da lapa.
Era especialidade da Dinda imiscuir-se com cobreiros, feridas persistentes e outras afecções de pele. Muito útil numa região colonizada por europeus tão pálidos e de olhos desbotados, debaixo daquele arreganhado sol calcinante.
De pele amulatada, uns beicinhos murchos escorregando boca afora, Gerrah era conhecida "a Nega da porteira"; ali era evocada em necessidade de benzeção, tendo por paga  constrangidas prendinhas roceiras. 
Nenhum cérebro primitivo se atrevia a cruzar uma frestinha da porteira sem permissão, tamanha a parafernalha munificente dependurada por aqueles paus retorcidos, quase a ralhar sinistramente com o chegado.
Nick, lambendo o suor em pontinha de língua, segue ao funeral cortando a montanha rumo a sudeste, por compungidas trilhas de bichos silvestres. Toda o Vilarejo (os patriarcas) se faz presente quando o Reverendo encomenda a alma cansada, iniciando com um "pelo sinal".
Uma ensimesmada exigência, tentando brecar a Terra em sua falta: que tudo lhe fosse branco... a mortalha (angariada de antemão), escassas florzinhas campestres, a túnica bordada de mansinho por ela mesma, anos a fio.