9.2.14

Blanche 48: Colheitas de verão

Blanche, numa lida quase infinda, antecipa a reposição da despensa, no aromático sótão da cabana. Palestrando com seus eus, preocupa-se com a seca que lentamente aniquila a valedoura vegetação.
As safras sazonais são colhidas conjuntamente a seus parceiros e distribuídas pela arejada tulha e paiol. Apenas a ela cabe angariar preciosinhos vegetais agrestes dispersos por toda a região.
Cereais selvagens e grãos indígenas, basilares para a ração de inverno, estão sendo apanhados no período matinal. As tardes quentes, de silêncio quase sepulcral,  são persecutórias de abundante leseira, com bichos enfurnados em covis. A garota emprega neste período o trabalho doméstico, à sombra.
Sem desacorçoar, quase arremata a perfumosa cocção de compotas dos anuais frutinhos silvestres, adoçados timidamente (devido a seu paladar indígena educado) ao caseiro açúcar mascavo, depurado na colheita de inverno da cana. 
Apoiada num banquinho solteiro, que costuma conduzir atado às nádegas, descaroça, descasca, raspa, pica, rala, numa toadinha sem pressa, até que o pincel da noite vá grafitando seus tachos crepitantes.
A lenta preparação de frutas e legumes desidratados discrepa totalmente de anos anteriores: em limitados dias já estão se esturricando sobre o pano amareladiço num desvão da varanda, exalando sabores.
Na margem baixa do curvilíneo regato, a escassa água, embora mais fraca, mais lenta, mais mansa, mais morna, continua teimosamente a arredondar as agastadas pedras, agora quase à descoberta. 
Após trançar alho e cebola em réstias artísticas, para irem ao sol num processo de cura, produz o coloral com sementinhas de urucum bem secas ao causticante telhado, de modo a avivar a alaranjada coloração. 
Os de casa adaptaram-se aos temperos indígenas acaboclados por ela. A serendipidade da culinária desta jovem advém justamente da mescla de culturas, a referir-lhe autenticidade. 
Noutro instante, cavouca à margem do regato, em busca das primeiras batatas de inhame da estação. As folhas, picadinhas fininhas em fios d'aranha, serão assustadas na banha de porco, temperadas com gostosos brotos de amor-seco.
As primogênitas batatas-doce, já espalhadas em peneiras, são veladas (repousam) no terraço para murcharem e concentrarem o palatável açúcar natural. Amendoins e pipocas recostam-se por ali, assim como as ardidas e odoríficas pimentinhas comari.
A mandioca (pão caipira) é amplamente cultivada lá embaixo, na pradaria, pois colhe-se ao outono para o trabalhoso preparo da farinha, goma e polvilho, que suprirão a família por todo o ano. 
Parte das variadas espécies de batatas, abóboras maduras e feijões já se encontram alocadas na tulha, em vistosos balaios de taquara. O milho para os cavalos e prás galinhas será colhido no outono. Por ora, retira-se espigas verdes pro consumo diário, assado ou cozido.
Sementes de bucha, cabaças, pepinos maduros, melões e melancias (todos primos) estão devidamente separados em miúdas cabacinhas, contendo parte da casca, para reconhecimento futuro. Ficam dependurados num caibro do paiol.
Após a recolecção, as castanhas diversas aguardam secagem e limpeza para serem também armazenadas em trouxinhas de folhas de bananeira. Sua preciosa coleta seguirá pelo início do outono.
Os pequenotes frutinhos da pitangueira e as seriguelas atempadamente maduras, em amizade, dividem o mesmo embornal, após a colheita de ontem ao crepúsculo. Um cheiroso ananás amadurece esquecido num cestinho. Fermentarão em um odre, para tornarem-se bebida alcoólica, à moda indígena.
Uma excruciante moita azulada de agave, agarrada ao penedo, lança polissêmicas hastes equivocadas a atacar o brilharento sol. Uma de suas suculentas folhas também comporá o fermentado, com ramas de assapeixe e frutos do camapu (saquinho de bode).
Num olhar arrelampado, Blanche encontra beldroegas, trapoerabas e carurus de  sombra, embaciados sob uma frondosa figueira, ainda viçosos e fragranciados. Serão armazenados dependurados ao teto, para compor suculentos guisados invernosos, em aromas coadaptados.
Sob um céu de azul extravagante, a lobeira no barranco, de perturbada beleza, persiste heroicamente, com suas amargas pelotas aguardando colheita. Num riso forte, a moça retira os frutos acinzentados, pousando um a um na cabaça presa à cintura. As galinhas (como os lobos) degustarão!
Os frutos da mamacadela, maduros e de-vez, serão afixados ao beiral interno do telhado, numa arquitetura triangular, para durarem o ano. São desmesuradamente medicinais.
Em périplo por toda a montanha que abraça o vale de Riolama, arrecada cá e acola, vitualha opulenta e incontroversa, escolada inteligentemente pela avó.
A uma distância prudente, cruza com um velho índio desgarrado, de aparente antipatia sincera e cansada. Ele vaga serôdio, em continuada busca de ajuste a um local de querência. Há objetivação num olhar que evita ódio e mira Blanche por largos segundos, então segue absorto pela trilha delgada.
Sabe furtar-se de desimportantes ajudas imediatas, que certamente o prejudiquem a longo prazo. Aprendeu nas tareias da vida admoestativa, que pedir e perguntar vicia, numa espécie de manipanso, levando-o a fragmentar-se em gente vil.
Insubmissa, ela pressente que o ancião ri estrondosamente, numa epifania interna, sem expelir qualquer som, aparentando receio de libertar o sol pela janelinha dos lábios. Sem esvaimento do espírito, num talento torturado, some-se na curva, esticando prosa consigo mesmo em fala sibilante.