30.1.14

Blanche 47: A vida madrasta

Em Riolama, a rotina segue enclavinhada no avinagrado verão seco, comprometendo colheitas e pastagens. Presos aos espinhosos preços praticados em Corda Bamba, a população, de olhos turvados ao futuro, além da subsistência, conseguirá anoréxicos proventos.
Quando o inverno surgir, ainda mais seco e espantado, não terão como fazer reparos, adquirir equipamentos, renovar a rouparia doméstica, nada... as providenciais doações à igreja, que são uma espécie de "seguro" à comunidade, começam a ralear vagarosas feito um entardecer.
A crua luz do sol tudo alaga, sem nuvem parda a coá-la, cega o apagado cintilão no olhar dos posseiros, alquebrados em torpor à espera que o aguaceiro empape a campina.
Lucano, o vendeiro, necessitou aditar os preços e as vendas caem. A jovem esposa, em cantinela aladainhada e dolorosa, se desdobra entre a ríspida adultez exigida e a afável adolescência desejada, gerando agastados conflitos conjugais em meio às grossas bagas de suor, pela lida feroz. 
O pai, agora viúvo, jaz melancólico e confuso, com momentos de terror que lhe dilatam as pupilas, nuns olhos escancarados de animal espancado. Estira-se ao comprido num canto escuro, alastrando uma expressão apavorada e beiço repuxado, como se um desgosto o penetrasse a carne.
Da cara tão magérrima despendem duas bochechas miúdas, rugosas e pálidas, disfarçadas pela branca penugem rala. Um náufrago em ruínas com escasso sorriso amargo franzindo-lhe o murcho lábio inferior.
Rob, genitor de Blanche, irriga com esforço descomunal, as persistentes plantações anexas à barranca do rio. Nos passos trilhados à rua da vida, repete esta dança de quando em quando. As pastagens já meio secas fazem os animais se locomoverem demasiado, se adelgaçando visivelmente. 
O rio orgástico, todo veemente, perde parte de vigor e diminui o galope. Seu néctar, num brilho agudo e metálico, é evaporado por um constante vento suado, funcionário do sol. O esturro gritado da cruviana desgarrada espalha o lamento da aferrolhada mágoa desta vila.
Numa propriedade, o celeiro ardeu consternado madrugada adentro, por uma faísca insistente que tentou provocar a carga d'água. A constrangida verba da igreja amparará a família, com um mutirão domingueiro para reconstrução. A vitualha? Esta será cedida às migalhas pelos vizinhos, também desfalcados.
Eric, em grandes olhos pestanudos abarcando a paisagem como quem procura um amparo, quebra-se maçado em vagos pressentimentos... mais uma desabrida seca a romper em voz pastosa, insistente.
Blanche, reticente, já nota a moderação no leite e a marcha amiúde das cabras ao regato, com as elevadas temperaturas. O pedregal, presença marcante na montanha dos caprinos, agora se sobressai com violência na paisagem rala.
A propriedade na planície recebe tempestades de poeira, com redemoinhos em mormaço a varrer galinhas e plantações. Os equinos, força da fazenda, necessitam complemento alimentar, contudo nesta época do ano não há. Os animais velhos ficam por lá, num espaço reduzido, mascando limões e gravetos para dar melhor chance aos jovens garanhões.
O Reverendo Albert, com seu cabelo rente e eriçado, farto bigode tapando-lhe a boca, perde aquele amplo sorriso onde lhe somem as pálpebras nas rugas salientes. Os parcos chuvisqueiros são levados em cordas pelo vento, perpendiculares e frágeis fiozinhos prateados.
Fogem os trabalhos extras, as pessoas somem da vila, a caça se apaga nas imediações... pouco se negocia num mundo suspenso à espera das águas, que respingam cá e acolá, numa fugidia ciranda sem respeito.
Orações domingueiras na igreja, encomendas de ritual da torrente aos indígenas, promessas aos espíritos de antepassados... nada muda a decenal estiagem local a admoestar tudo que vive. 
E o áspero vento brame em respiração custosa, derramado impertinente e fatigado, todas as alvoradas, num gritar que morre aflito, polindo as encostas. Os trovões, longe, anunciam uma esperança tola após o relampejar insólito e aberto a chegar pelas frestas.

20.1.14

Blanche 46: Banho de cachoeira

O mormaço de verão baforeja a montanha dos caprinos. Dia claro e gargalhoso, com a branca lua cheia a espreitar pelo cantinho  do céu. Blanche propõe a Tom que conduza o indiozinho consigo no mergulho à piscina natural, no decurso em que ela alinhava o aromático ensopado de lebre.
Todinho encabulado, porém solícito, ele acode a ideia e ambos dirigem-se à tulha. Ela concede panos, roupa limpa e sabão, num áspero balaio de palha, daqueles que se prende balançadinho à cintura. É hábito este banho caprichado, todo final de sexta-feira, devido à descida da serra ao sábado.
O garoto, aclimatado ao nado cotidianamente, levantou-se arrebatado, com adminículo de Tom e do rijo cajado. Um olharzinho sorridente flechou-os farrista. Externamente, a chaga encontra-se cicatrizada, contudo o padecimento ósseo denuncia que a perna ainda inspira ponderação.
Agarrado ao franzino, porém robusto ombro esquerdo de Tom, segue manquetando morosamente pela picada curta, com fortuna mesclada a apreensão. Blanche lhe emite um bonitinho sinal de ânimo e volta a seus quefazeres, na estreita cabana de troncos.
Instalam-se cautelosamente à oposta borda d'água, sob o primário degrau da cachoeira límpida, com frescos respingos a lhes cutucar. Neste lance inicial, como quem ensaia a se despencar, a poética queda d'água, apesar de alargada, não atinge meros dois metros de altitude.
Diversas rochas deslocadas em volta do poço, permitem transpô-lo aos pulinhos, de lado a outro. A mata ciliar sombreia as margens e confere sensação (falsa) de acolhida: pisar em penedo úmido, recoberto por lodo, é tombo quase certeiro, com possível sisudez.
Seguindo abaixo pelo planalto, a cerca de duzentos metros do  vertiginoso despenhadeiro, com mais três quedas absurdas, o regato espraia-se capilarmente, de abraços com o majestoso pedregal. É ali que Blanche iliba roupas, quarando-as ensaboadas ao sol e batendo-as na fraga, a fim de desencardi-las.
Tom, com a inconveniente timidez queimando-lhe a face, esfrega parte após parte, o tenro corpo nu do adolescente, com sabão e bucha natural. O deslizarzinho da espuma camufla o desconforto que sente ao toque num corpo humano.
O mocinho, habituado a constantes atividades grupais, age com a naturalidade devida, indicando-lhe os locais que requerem maior zelo: as costas e os pés. O restabelecimento do peso devolveu-lhe a maciez juvenil, afinal. Após semanas acamado, seus pés varonis tornaram-se sedosos e graciosos.
Para o enxague, Tom, posicionado com as pernas descerradas ao interior do tanque, todo ele encafifado, pega-o cuidadosamente nos braços e o deposita numa pequena laje submersa. Sem vacilo, o rapazote sai nadando desenvolto naquele bolsão d'água, com cerca de dez metros de diâmetro. 
A cena, espontaneamente estética, tira o fôlego de Tom, não apenas pela lindeza daquele corpo translúcido, contudo também pelo nítido benefício que a água demonstra na reabilitação do alanceado. Faz agora sua própria assepsia, entremeando furtivos olhares atônitos àquele ser transformado em brilho, que esbrangeu a barreira do universo físico: galgou uma dimensão onde é exclusivo, pleno, perfeito. 
Mergulhando e emergindo, o indiozinho avança mais e mais, sofregamente a nadar, num impulso desvairado em reaver-se, reassumir-se. Tom, prostra-se de bruços na laje seca, com o sol a absorver-lhe a água do banho, não ousa quebrar aquela magia, não ousa adentrar a cena. Mantém-se à orla, como quem admira, suspenso no tempo, uma tela famosa.
Afadigada do aguardo, lá da varanda, Blanche desata a gritar, arreliada já. Tom desperta da hipnose e conclama o púbere, que também volta a si. Arrastado à laje com airosidade, se enxuga desajudado, e com ânimo ímpar se escora no amigo para vestir-se e voltar.
Retornam silentes, porém perturbados, cada qual por seus motivos, quando Blanche os avista e admoesta irritada: o almojantar passa do ponto. O primordial ato de Tom, para acalmar-lhe os sobressaltos, é correr cachimbar, perdidão em dúvidas, suas lisérgicas e acalantadas cascas de bergamota.
Após a minguada refeição, devido ao desapetite, egressa-se ligeirinho, afobado, deixando a cargo de Blanche realocar o rapaz à tulha, para o descanso noturno. O menino cantarola, já na trilha, e ela percebe a atmosfera festiva... nada cita, apenas compreende que a ablução passará a ser diária, por fins terapêuticos. 

19.1.14

Blanche 45: O fim da jornada

Com o advento de Tom à Montanha dos Caprinos, o garoto ferido persevera nos relatos, dia após dia, no decurso do “almojantar”. Evasivo e silente, Tom arraiga-se às proximidades da tulha, estimulado pelo intuito de atinar a estoica façanha.
Gesticulando com trejeitos de agonia, e aguardando a tradução por Blanche, ia o menino narrando cada etapa, cada dia da madrasta aventura na brenha de volume impotente no tudo e no nada. O respirar ofegante, o embargamento de voz, denunciavam a veracidade profunda daquele relato:
E então, agora sem a salvaguarda do estrepolento cão a latir com furor, o abnegado grupo acolitou morro acima e enveredou fatigante, por um monótono ribeiro. Portando bordunas, distendeu-se lentamente, devido ao catre do ferido, naquela opulenta natureza selvática.
Abduziram-se da fumaça, dos rastros e ruídos peculiares dos errantes e ameaçadores silvícolas isolados. Eles impõem respeitável fama de canibais e nutrem rancor mortal a qualquer outro grupo, vivendo em constrição, ainda no período neolítico.
Porquanto, não mais se depararam com cabaças quebradas, cestos de palha rustidos, escória de ocas e temíveis tacapes ornados, que os deixavam inquietos e apavorados. A fobia de emboscadas já não lhes espreitava com ardor, estando o som  dos borés cada vez mais distante.
Após enrolarem um morro abrupto, foram completamente embriagados pelo tinido da sineta da capela... era proclamação de óbito no vilarejo. Gritaram e saltitaram assanhadinhos, à borda do abarrancamento com fundas gargantas de rochas a repeli-los.
Foram impulsionados por aquele providencial retumbar, vindo espaçadamente de trás do maciço. O som lhes era íntimo, pois ouviam-no constantemente da reserva. Uma réstia de esperança percorreu seus frágeis corpos surrados naquela tardinha abafada; a caminhada passou a render consideravelmente.
Quando o ribeiro se afinou, transmutando em regato, montaram bivaque debaixo de uma espessa  e encarnada moita, de odor inebriante. Com crassas folhas de inhame, angariaram peixinhos minúsculos e girinos, engolindo vivos, sem piedade ao paladar.
Nuvens colhiam espaço no céu grafite, em meio à noite foram despertos pelo assopro impetuoso do vento, que varria folhas secas, assoviava e rugia na encosta, chacoalhava a vegetação, anunciando iminente temporal.
Alarmados bramidos de feras com hábitos noturnos ecoavam, desencadeava-se a busca por abrigo na flora pródiga, com as estropiadas nuvens indecifrantes a avolumarem-se. Os incomensuráveis  insetos de vargeados lamacentos ecoavam em sinfonia.
Foi o catadísmico aguaceiro da jornada: estreado por amplos granizos, que cingiam a pele e roçavam a densa moita, seguiu-se então a intempérie elétrica, com raios cintilantes e trovões estridentes, atuando numa luta titânica.
Passado o horror, um fino e persistente chuvisqueiro acompanhou-os em suplício gelado até o alvorecer. Com árvores inferiores, desvencilharam-se mais fluentemente e beiradejaram a encosta, sugando suculentos gomos de cana de açúcar.
Foi quando astuciosamente romperam a pastagem: lá estava possivelmente o antigo chão sagrado dos ancestrais. Haviam caminhado cerca de quatro horas, pelos cálculos de Tom. Foi quando apregoaram pelo ajutório de Blanche.

Blanche 44: E comeram o cão

O enfermo hóspede de Blanche continua o relato visceral: neste quase verão, a chuva esteve persistente, ora brava e rápida, ora fina e gelada, incomodando os meninos perdidinhos. Nas tempestades elétricas, onde raios e trovões pareciam digladiarem-se constantemente, o medo sobrepunha-se ao desconforto.
Muitas madrugadas gélidas e encharcadas passadas ao pé de grandes árvores, impossibilitaram o sono dos demais. Ele próprio vivia apenas em sobressaltados cochilos devido à inquietante dor, pela falta de devido repouso.
Abrigos ruins, urdidos com meras folhas de palmeiras, o aperto da fome pela ausência de caça, os intensos e constantes gemidos do líder, deixavam o grupo cada vez mais lúgubre.
A dificuldade em fazer fogo era imensa, na falta da providencial pederneira. Poderiam inclusive, assar bananas verdes, pois há algumas moitonas de bananeiras à beira do regato, de quando em quando. 
Evitando ataques dos algozes mosquitos, carrapatos, formigões e marimbondos, untavam-se em argila bem espessa, para seguir arrastando o ferido. Foram perdendo os adornos, inclusive o sagrado dente de suçuarana que carregam no septo nasal.
Túnicas, tangas, diademas, pulseiras e colares, assim como os brincos de penas, foram extinguindo-se pelas infindas trilhas sinuosas e escorregadias. A exaustão apenas permitia repor as obrigatórias e lindas tornozeleiras, trançadas com emplumação.
Sem veneno para a zarabatana, perdiam pequenos veados, capivaras, pacas, ouriços, macacos, quatis, gambás, peixes e muitas aves. Clavas improvisadas quase não surtiam efeito, devido à imperícia no uso.
Os frutos ainda estavam mal granados, de mal com eles, restando palmitos, cana de açúcar, coquinhos e jatobás, que por vezes, levavam consigo. O mel para o ferido, extinguira-se gradualmente. As cascas e raízes eram amargas e arranhavam a garganta, causando por vezes, dores abdominais.
Um pressentimento inexplicável acelerou a marcha tormentosa, ao primeiro som penetrante da flauta longínqua dos índios isolados. As contingências desalentosas embargavam o esforço ingente pela alegria, apesar da exuberância local.
Macacos de várias espécies faziam travessuras na copa das árvores, mães carregavam bebês às costas, saltando distâncias incríveis, liderados por um velho grisalho, dependurado em cipós. Avistando o quarteto, fugiam em ensurdecedora algazarra.
Pássaros agitados, de todas as nuances de cores, e de tamanhos diversos coalhavam o céu, com cantos dos mais variados timbres e entonações. Seus ovos nos ninhos eram chupados fervorosamente pela equipe esfomeada.
Um furinho com uma pedra, bem de jeito, na ponta do ovo, e a retirada das lasquinhas de cascas... delicado como quem cuida de neném. Então é só sorver, engolindo depressa para afugentar o mal gosto.
Certa manhã, com o grupo já em marcha, um rebuliço invadiu o esplendor selvagem do regato. O cão, em bravura, enfrentou sozinho um grupo de caititus, em sinfonia grotesca, enquanto os garotos se evadiam com a maca.
A brutalidade das cabeçadas, mesmo durando poucos minutos, rendeu-lhe rasgos medonhos. Alcançou seus donos exausto, pingando sangue; a judiação incomodou a ponto de ser sacrificado.
Num rompante, a clava atingiu-lhe providencialmente o crânio já vermelho... último grunhido selou os pormenores da catástrofe, enquanto estrebuchou por míseros segundos.
Amarfanhados e taciturnos, os meninos friccionaram estrategicamente um graveto até obtenção do fogo. Conseguiram um magro e repugnante churrasco fúnebre; em último e providencial auxílio canino, encontravam-se agora esfaimados.

17.1.14

Blanche 43: Detalhes do acidente

Ao arrebol do domingo, um desjejum com mingau para o trio de indiozinhos debutar a jornada à absorta reserva, que se avantaja para oeste. Perlustrarão a miríade e implacável trilha, que deslocou a cunhãzinha Noru e outros silvícolas ali mergulhados violentamente antes dela. 
Ração de carne defumada, rapadura de abóbora, farináceos e frutas passas a decantar a jornadona de tripla diária. Nova pederneira substitui a que rolou pela ribanceira com o guia. Arcos e estoque de flechas foram apetrechados ontem, assim como a zarabatana. 
O fraco garoto comandante albergar-se-á com o escopo de recobra da calamidade. Nick se foi ontem, aflitozinho com possíveis sequelas na quebradura... o risco de gangrena pela fratura exposta foi extinto, pois a febre cedeu. Resta saber se a solda deixará o osso defeituoso.
O ferido, todo ele acabrunhado, se exonera do desprendido trio, que segue bem antes do primeiro raio solar. Animais silvestres mantém a trilha aberta e fresca; bulícios e vultos do grupo se apagam gradualmente no cerne da mata. Foram-se!
O chefe enceta o relato à Blanche sobre o debilitante martírio, quando desvalou-se no penhasco, prostrado ferido na cava do assombroso vale, segregado ao lado dum poético regato correntoso e acachoeirado.
Fora resgatado devido ao importante posto de líder, outro integrante da equipe seria abandonado à míngua. Não se trata de maldade, é propiciatória tática de sobrevivência, pois necessitaram dois dias para o difícil resgate do ermo medonho.
Alterando a vereda, pela impotência em subir uma maca ao despenhadeiro,  extraviaram-se no espesso sertão bruto, se embrenhando na direção oposta à reserva, e próximo aos terríveis silvícolas isolados que vivem em plena idade da pedra.
Naquelas traiçoeiras brenhas do vale, transmudaram a vegetação emaranhada, com magnificente cipoal denso e árvores espessas de altura respeitável. Animais ferozes espreitavam em lacônica advertência.
O cruel sofrimento do cecerone, solavancado na maca, arrebatava seguidos desmaios. Na obscura luta pelo resgate, perdeu-se armas e mantimentos, sobrejando apenas o facão, que custou a ser resgatado.
A fome apertava, conquanto estavam habituados a ingerir insetos e castanhas de palmeiras, afarinhados frutos do jatobá, raízes e cascas de árvores. Riachos não minguavam, e por eles a equipe seguia.
O guia contudo, sobrevivera por semanas com meramente água e mel, sem comer ou dormir (arrancava cochilões), pela dor dilacerante e persistente. Em agoniada sofreguidão, abortando peso e ânimo.
Arrostou e solicitou a morte intermitentemente...
O cãozinho que sempre os acompanhou também emagrecera drasticamente, porém alegria nunca lhe escapava. Perseguia pássaros infantes, com corridinhas e volteio, grunhidos e latidos, tapeando os pobres; caçava pequenos animais e comia abundantes espécies de sapos à beira d'água.
Sem a pederneira para as fogueiras noturnas, que tanto apreciava, aninhava-se entre folhas secas, formando uma simpática bolinha preta, seguindo com as orelhas, a contínua bulha da floresta hostil.
De pequeno porte e agilidade indecisa, com longo rabinho peludo e olhar faiscante, como quem nos enxerga o cérebro. Era o achador de ovos para todos, menos prá si próprio... recusava-se à iguaria impalatável a si.

Blanche 42: Conjugação interfemoral

Neste tenro anoitecer de sexta-feira, enquanto Nick se banha ao regato (para o repouso), ouve ao longe, burburinho ralo de dois integrantes do grupo que ali se hospeda.
Intrigado, agiliza a assepsia e segue-os pela trilha em lusco-fusco. Após torcerem a curva, se aproximam das grandes pedrarias. O filetinho de lua branca começa a se acender com ajuda do vento leste. De súbito, haviam jornadeado quase meia hora pastagem afora.
À distância, Nick averigua em detalhes os gestos e o timbre de voz da dupla, pois não concebe sua língua. Num ímpeto, param encostados ao rochedo e as lhanas carícias de todo o percurso se intensificam abruptamente.
Blanche já lhe havia referido a prática de conjugação interfemoral entre os indiozinhos púberes, assim como o ato de inserir parcialmente a glande no prepúcio do parceiro, em circulares movimentos longos e leves.
Tais condutas, longe de serem promíscuas, levam à lealdade vitalícia entre o duo, em abnegação tão imprescindível numa sociedade tribal primordialmente caçadora e coletora, ainda que sedentária. Remete à alma corajosa e caráter viril, um amor transcendental.
Consubstanciando emoção e razão, já afastado da trilha, o espectador delira ante tão artística cena: a nua pele dourada entrelaçada sincronicamente em corpos esguios e formosos, numa escassa luz de penumbra.
Resguardado por este verniz noturno, deleita-se do momento como se com eles estivesse, sentindo os feromônios de cada gotícula sudorífera, fruindo cada toque e ruído sem a menor parcimônia, fervilhando também em ardor. 
Ao retornar, sempre por detrás do par, delibera com dentre si sobre sua inata condição peculiar, sua infinda paixão platônica pelo assex Tom. Sente-se culpado e assustado ao mesmo tempo em que o deseja carnal e veementemente... é humano afinal.
Na inequívoca sociedade indígena, os impulsos instintivos da expressão psíquica sofrem menos imperativos de valores sociais e não mantém reservatórios de energia sofreada. 
Quando Tom lhe enxergar, jamais poderão expor-se à intolerância ao diferente, presente de forma tão vivaz na aldeota. Todo o seu prestígio, sua força política e espiritual, seriam arranhados a fundo.

16.1.14

Blanche 41: Quatro indiozinhos perdidos

Após semanas marinadas em rotina, na manhã desta quinta-feira chuvosa, ouve-se acabrunhadores gritinhos desusados à margem da floresta que se escorrega, magnificente e desimpedida.
Blanche colhia água fresca ao regato, corre até Nick e ambos averiguam. Surpreendentemente, silhuetas inquietadoras despontam pelo lado norte, estando a reserva indígena a oeste.
Visivelmente abatidos e esfarrapados, estão sem um pedaço sequer de pele de suçuarana a lhes proteger da chuva frigíssima. A uma distância prudente, estacam e estudam, medrosos, a dupla anfitriã.
Um vem de arrasto numa maca rudimentar, puxado intercaladamente pelos outros. Os quatro aborígenes a espreitar, aparentam estar na puberdade, aos quinze anos aproximadamente.
Acostumada de antanho, a receber visitas similares, Blanche se aproxima lentamente, falando baixinho na língua deles, embora sem muito domínio. Destarte, os homenzinhos brutos se exaltam.
Justamente o garoto da maca é o líder, e lhe dirige resposta. Necessitam adminículo urgente, pois estão à beira da inanição, perdidos a várias luas na selva sombria, enquanto caçavam, num rito de passagem.
Nick vai se achegando, toma o controle da maca e todos o seguem rumo à tulha. Ali instalados, enquanto ele cuida do enfermo em meio ao bulício, ela prepara generosa ração com escopo de arribá-los.
É servida uma paçoca de carne assada pilada com diversos farináceos. Frutas silvestres, castanhas e rapadura complementam o prato, que é devorado num chupão, em meio a olhares afoitos e confluentes. 
Blanche retoma a ordenha sozinha, pois conhece o temperamento investigativo de Nick... pelo restante da semana, ele descambará para a tulha. A garota, no entanto, não vê nenhuma exoticidade na soberba ocorrência. É acostumada.
Estirados à palha seca, refestelados e seguros, os três passam a cochilar instantaneamente, após inúmeras noites soltos à intempéries do relento. O quarto menino mira com ferocidade acentuada ao ser tocado na perna quebrada.
Melhor não bulir; o ferimento já vem de longe e a tala parece razoável. Arredio, insubmisso e intratável, o animalzinho acuado morde seu protetor, que não lança um esturro em respeito ao sono dos demais.
Sobreveio a tarde, e Nick preparou um vigoroso chá anti inflamatório, pois o acidentado arde em febre a diversos dias, castigado por indizível sofrimento. Amansado, cede ao esgotamento e dorme em sobressaltos.
Sua debilidade e abatimento devido ao ermo implacável são tamanhos, que ossos lhe saltam assombrosos. Respira com lacônica sofreguidão, ainda preso à calamidade inconveniente.
Nick admira longamente o quarteto, agora entregue à mansidão do sono. Vendo-se estatelado naquela imensa solidão árida e profunda, apenas rasgada pelos gritinhos de Blanche contra os caprinos, remete-se a seu próprio indiozinho: Tom!
Dialoga com o seu outro eu, do alto de seus poderes, sobre o estigma da solidão, que o quartetozinho não amarga conhecer. Numa conversa franca, inventaria seu "relacionamento" com Tom. Perde lágrimas quentes, que em dicotomia, traça uma trilha gélida no rosto e no coração.

15.1.14

Blanche 40: Ariadne viúva e liberta

E as leves asas do tempo voaram desmesuradamente... a desacorçoada Ariadne é acordada de súbito numa noite seca, pouco antes da madrugada. Um desconhecido, a cavalo, esmurra-lhe a janelinha de paus engretados. 
Ela gira a tramela e sonda de meia cara; à luz vazada da lua, se depara com um vozerio masculino, informando em supetão, que lhe trouxera o corpo do esposo. Notícia suspensa, sem dono.
Arranca solavancadamente da mula aquele corpo inerte, amarrado, desgastado. Assim que a porta se abre, deposita-o num canto do cômodo, sobre um pano xadrezinho que Ariadne estende. Sem esticar prosa, o vulto se vai; missão cumprida.
Temerosa, assustada e em parte com alívio, não toca o defunto, nem mesmo se aproxima...faz uma breve oração em cochicho poemado, pois é obrigação derradeira de esposa. Acocora-se ao canto oposto, descalça, com o barrado da saia entre as pernas, velando solitária.
A noite escorrega lisa e lenta, puxando-se as rédeas; um sorvedouro invade a viúva, enquanto a cruviana  sibilante assopra pelas gretas do barraco. Em litígio, madrugada e arrebol disputam, até que irrompe a luz. 
Uma emboscada o desertara em meios-trajes, até mesmo as velhas botas... o desertaram sem vida, e as poucas autoridades de Corda Bamba, em protocolo, apenas cuidariam dos trâmites documentais. 
Ariadne se apressa a contratar um serviço para o enterro, embaixo da mesma macaubeira, lado oposto à avó. Sem lágrimas, sem flores, sem vazio... numa estroina densa, mantém distância inteligente. 
O menino, correndo aos braços da garotinha vizinha, segue absorto, as borboletas sem graça que pousam nas fezes bovinas do terrapleno sem cercas. Era um pai? Nem percebe. 
Para a quinzena, Lucano a visita, costumeiramente, e recebe a notícia em sobressalto: a cunhada não deve durar em desamparo. Agora, definitivamente casado com sua irmãzinha após a orfandade, faz-se homem da família. 
Sem rodeios, Ariadne planeia um futuro lidador, de mulher possantona e liberta: do pai, do reverendo, do esposo e do cunhado em antemão. Já dividiu a viçosa vivenda em quatro compridos lotes, arrematando-se ao rio. 
Havia algo na conta bancária, fará cômodos comerciais. E inclusive manterá um deles à frente do barraco, para sua oficina pessoal. Haverá trabalho infindo com as redes e os bordados.
O bebê na barriga não tarda, aquela dura bolinha desgrudada destoando do corpo magro, que ainda amamenta. Será a remota alusão às cruéis amarras servis. 
Riolama? Pro futuro, assim que amputar a heteronomia e desbastar empreendedoristicamente um aceiro seguro, neste conflagrado mundo masculinizado, angariando pingo a pingo, convicção e credibilidade comercial.

14.1.14

Blanche 39: As coincidentes tragédias

A semana apressurou-se na montanha dos caprinos, todavia Blanche não abandona a psicodélica figurona do eunuco, nem tampouco o estranho desembrulho de Peter para consigo, assim do nada...
Peter, no seu juízo emaranhado, nunca lhe puxara uma prosinha sequer, interceptava seus comentários com ríspidos escudos monossilábicos. Num esvaimento do espírito, ela se perde naquele invulgar ocorrido.
Já conta dezessete anos e nota-se a quase madurez, feito aquela primeira manga de-vez nos jogando um chamego do alto intransponível da mangueira. Completa um quinquênio com esta família. Enquanto cisma, após o “esposo” alçar a morraria, descai suavemente e afaga um dos cães.
Scott é tão absorto em suas atitudes, que chagam a parecer ensaiadas: após a ordenha, dirige-se ao desgalhado ingazeiro à beira do regato, colhe-lhe uma penca de precoces bagas. Sentado num sombreado, estica o beiço e abre meticulosamente cada uma, chupando as nevadas sementinhas, que num canto de boca expele prá longe... e amontoa a cascalhada.
Com grunhidinhos de êxtase, o cão se deixa esparramar à sombra da dona, todo mergulhado na relva fresca do terreiro. A cauda negra, ganha leves tons dourados, por fora da navalhante sombra matinal. 
Por remeter à Eric, é seu animal favorito, e bem sabe! Rola vagarosamente para cá e acolá; e quando finda a blandície, cutuca as leves mãos dela com o úmido focinho, solicitando extensão, idêntico a Eric. 
A cinzenta choça de troncos emoldura-se a oeste, pela grande floresta íngreme; e para além dela, na descida, floresta adida à imensa reserva indígena. Sol de alvorejar ataca a fachada: brilha, doura, cega, aquece.
Mas o que ocasionara a abrupta evasão daquele emblemático sacerdote?  Fuga? Expulsão? Naqueles largos segundos a que se fixou no eunuco, viu-o rindo estrondosamente, e apagou-o depressa, lavou-o de si.  
Na deleitável montanha, quase finda-se o paraíso primaveril: novas folhas e flores, gansos na aguada abaixo, parição de fêmeas... todavia a implacável tempestade de granizo aniquilou galinhas e arrasou plantações por toda a pradaria abaixo. 
A genitora de Lucano, em Riolama, adoeceu bruscamente, e logo veio a falecer pela febre repentina. O mesmo se sucedeu à regateira senhora viúva que a tutelou. A enfermidade não se alastrou devido à quarentena instituída (a tempo) por reverendo Albert. 
O supersticioso vilarejo encontra-se em luto, e apreensivo pelo receio da febre inclemente. Aglomerações estão proibidas por quatro semanas. E para completar as tragédias, o fogo ardeu na cabana da família novata, na estreita fazenda rumo ao rio orgástico. 
Neste domingo, ocorre mutirão de reedificação, pois a parentela habita de improviso, a espremida tulha. Dois outros mutirões remendam as plantações... Os três adversos eventos acirram a crença nos poderes macabros do eunuco, já tão estigmatizado. 
Scott, aos gritos, interpela os devaneios de Blanche; está quase em prantos: um marimbondo caçununguçu lhe ferroou o lábio superior. O inchaço aos poucos deforma seu rosto; ela "voa" ao regato e retorna com argila fresca; ampara "seu neném” com fleuma ternura.

11.1.14

Blanche 38: Um eunuco se faz

Domingo à tarde, revertendo a cavalo da propriedade paterna, Blanche se depara com uma zaragata no terreirão frontal da residência de tábuas.
Instintivamente, contorna-a de manso e capta a essência da altercação. Um afeminado eunuco vagara pela temerária floresta, partindo da imensa reserva indígena, detrás da montanha.
Acha-se todo ornado com abrasadas pinturas sacras, portando adereços adelgaçantes, contudo todo ferido e desgrenhado pelos dias ao léu, sem o pajem que o honrava prontamente.
Eunucos são seres meio bruxos, meio deuses, passíveis de ascensões celestiais e descensões infernais; e apenas prescindem de seu espaço imaculado, em apostasia, fugidos ou banidos.
Furibundo, gesticulando e bradando, tenta intimidar a família à procura do doce sabor de conquista, que atônita, prostra-se diante da intensa entidade fantasmagórica. 
Blanche intercepta tamanho arroubo ainda montada, e imperiosamente comunica-se na língua indígena com o feiticeiro, de imensos e harmônicos cabelos zainos.
Este, assustado, deixa a “máscara" e implora auxílio. Encontra-se em passadiço, então solicita pouso e alimentos, a tarde já fria em breve se fará noite, diz em timbre de gravíssima beleza.
São seres manipuladores do sacro que rogam pragas, e Peter, num rompante, captura a velha égua reformada. Apesar da acastelada estima ao equídeo, esquivar-se-á de riscos.
Ufa! Foi-se a criatura, desajeitadamente montada a pelo, com um embornal de vitualhas preparado por Colen. Ganha a estrada nas jocosas vestes esvoaçantes e apaga-se dentro da poeira.
Tal inconveniência fez com que o guardado Peter, pela primeira vez, arrastasse um discurso desnecessário com Blanche, enquanto sobem a montanha. A curiosidade o impeliu.
Ela aclara que quando eclode um indiozinho especial, que se distingua por um dom ou sinal físico, abre brecha para observação dos pajés, naqueles olhos indecentes que não piscam. 
Em torno dos nove anos, quando os garotos indígenas cruzam uma espécie de adolescência, o "especial" é arredado da família e instado na caverna de um ancião iniciado. Pavor e deslumbramento.
As abrasadas lágrimas da mãe, tingem-lhe o rosto em prata, na estranha éticazinha que mistura emoções. Saboreia um caldo fino de alegria na profunda crueldade desta desominização.
Sua iniciação na seita dos psicopompos durará o ciclozinho de um ano, com todos os ensinamentos e ritos necessários, quando fará estréia da dopagem, hora após hora, para a posterior orquiectomia.
Por quatro luas completas, será fomentado com líquidos vegetais, em caverna escura, e com fungos estupefacientes, chás alucinógenos, incensos lisérgicos e outros opioides (venenos de insetos, sapos).
Com a lua cheia subindo a trote, o séquito de magos, em bafejantes sorrisinhos bravios, se dirige ao local abençoado em meio à floresta, com ungida faca de sílex soberba e autoritária.
Num ligeiro golpe, um sectário sem critério de vida, retira o pênis e saco escrotal da criança, que já se encontram amarrados com finíssimo cipó, para deter a corrente sanguínea.
O próprio brado ensurdecedor desperta o incipiente eunuco do transe, e o devolve desmaiado sobre o rochedo sacrificial, recoberto por emblemáticos petróglifos miudinhos, que se assustam com a cena.
Um canudo de madeira oca é instalado no orifício penial para que a urina flua. Em maca, o garotinho, com o atônito no rosto, retorna à caverna pela madrugada, a comitiva entoando cânticos exotéricos. 
Em constante vigília, curandeiros comutam emplastros, concebem banhados e ministram chás anti inflamatórios, mantendo a dieta frugal, e o estado estupefato do menino, até que recupere as forças e se emaranhe na enantiodromia. 

Blanche 37: Flatulências e passeio

Amanhece um generoso domingo empurrado pela brisa. Ao refulgir o sol, todos terminam o desjejum na casa de tábuas. Blanche, de beleza perigosa, à medida que encarrega-se de Isaac, vela pelos maiores, amestrando-os num jogo indígena de pedrinhas. 
Em cuidadosos trajes de “ver Deus”, e prontos para partir, não podem amarrotar-se. De repente, Bencio contesta lá no cantinho do salão, que Verna soltara uma ventosidade anal abundantemente ruidosa, assim: pororóóó...
A garotinha, desfavorecida, num misto de vergonha e pavor, encolhe-se um bocado, a ponto de ficar miudinha embaixo da bancada. Regurgitando o branco dos olhos, mãozinhas espalmadas no assoalho, mordidelas ao beicinho, aguardando punição. 
Roya se abana, tentando interceptar inutilmente o possante fedor. Blanche, em fisionomia leve, discursa que até mesmo os indiozinhos expelem flatulências... E os convida a uma aventura altamente secreta.
Já no quintal, se dirige ao galinheiro e agarra um ovo choco, dos que não vingam em pintinhos. As donas de casa os utilizam como indês (mostruário) no ninho, a estimular postura de ovos pelas galinhas.
Todos quietinhos, pé ante pé, seguem a tia até o baita lageado de pedras próximo à porteira. A regra do jogo indígena, é permanecer o maior tempo possível bem próximo ao ovo, de fedentina insuportável, após a quebra.
Todos se posicionam a uma distância inteligente, para que o conteúdo fétido e tóxico não espirre em tão nobres vestimentas. Blanche exerce galeios com o ovo em mão, mirando no meinho de um ponto saliente.
Atira masculamente a bomba biológica bem ao cume do rochedo. Instantaneamente se dispersa o cheiro nauseabundo, quase visível, quase palpável. Seus olhos impossíveis gritam!
Cada integrante da equipe deve aproximar-se ao máximo do epicentro catinguento, sem esboçar náuseas. Blanche, com ar de quem se pertence toda, comanda a bagunça sigilosa.
Quem fraqueja, deserta o território demarcado por gravetos. Isaaczinho, nos braços de Blanche, resmunga e se retorce, apoquentado. Ela não se aproxima o quanto apreciaria, em respeito a ele.
Obviamente, Bencio tornou-se triunfante, pois as duas garotas sofreram tanto receio em vomitar nas tenras vestes, que efetuaram prudência demasiada. Ele receptara em medalha, um belo limão cavalo, na sua madurês dourada.
Blanche retirou um fininho cipó por entre os arbustos, fincou no limão, fez um colar e laureou o vencedor, conquanto ele permaneceu bem arcado para frente... aquela ácida fruta a pingar... sua indumentária a resguardar.
A tia, após período suficiente, retirou-lhe a medalha e escondeu-a sob a pedra, para que o sol não a avarie. Será resgatada no revir do vilarejo.
Acocorados à outra borda do pedregal, mãozinhas enlaçando os joelhos, ouviram dela que o jogo é célebre entre seu povo: os deixa fortes, destemidos, empreendedores, rústicos; atributos necessárias à vida tribal. 
As carroças se abeiram e Blanche corre restituir o bebê à Colen, que não irá. Com semblante de santinha perante Sara, acondiciona Bencio e Verna sobre o assoalho forrado por tecido rustido.
Estrategicamente acomoda-se na segunda carroça, juntinho às costas de Eric, abaixo da boléia. Com Roya ao colo, trança-lhe novamente os cabelos enquanto venera o adorado. Tão perto e tão distante...
Esbanjando confiança, contudo sem se fazer de fácil, pensa e diz com propriedade, assuntos másculos, enfatizados com o dedinho indicador eriçado. A voz modulada, baixa e firme, expele as palavras, que se espalham na pastagem.
Os homens da família: Nick, Scott, Tom e Eric, o agregado, fazem gestos de admiração enquanto ela, cheia de si, discorre com propriedade sobre os problemas da vila. Com gargalhadas no olhar, nota, assim de supetão, alguma solução inusitada.
Peter, à frente com Walacy e a família,  alheio ao discurso exaltado, canta hinos religiosos. Scott, acomodado ao chão, em frente à "esposa", alisa a selecionada palha de milho, na pontinha da faca, sobre a coxa robusta. Uma cariciazinha que apenas emprega ao cigarro, bem cuidado, sem pregas.
Nas pontinhas dos dedos, esfarela o fumo picado, perfumento, e vai pitadeando num filete. Umedece levemente a libidinosa língua e beija de sul a norte, a borda da seca palha: cola natural.
O restinho de cuspe que sobra, Scott lança `a distância, admirando a "esposa" Blanche. Vai acendendo com pitadinhas minguadas, e mastiga a fumaça, satisfeito. Golfa espaçado, as bolotinhas perfeitas - um artista no ofício.

10.1.14

Blanche 36: Amores enviesados

Ao final do crepúsculo, Blanche e Nick conquistaram enfim a planície. Num pulinho, ela desce e abre a pesada porteira de paus que separa as arteiras ovelhas da região familiar.
Com o ruído rasgado, todos aparecem à entrada, acotovelando-se. Um aromático ensopado de lebre com inhame aguarda  fumegante sobre a bancada, em esmerada caçarola de terracota. 
Após estimados cumprimentos e olhares audaciosos de Blanche transpassados com Eric, desoprimem-se o carroção e todos adentram seriados, ao comprido salão da casa de tábuas.
Eric, num relance, arrasta Blanche para o terreiro escuro... alegando detalhes sobre a parição da cabras. Ela acaricia ardente, seu rosto cansado e tudo se faz infância: Eriquinho e Blanchinha com uma vida à frente, como bem lhes convier. Ele aperta manga de camisa nos olhos, lágrimas festeiras.
Seguido ao “almojantar”, os treze entes familiares se chacoalham ao som da gaita de Walacy. A meia-luz da lamparina tenta, em vão, trançar cada cantinho do salão e as assombrações, aves silentes, lançam principiozinhos de ingenuidade.
Sara, sempre rígida com as crianças, se afrouxa diante de Blanche, pois esta criou-se desgarrada como indiazinha, e não compreende Isaac “mumificado” em faixas; onde apenas se movem os seus cachinhos de ouro.
Num quase monasticismo, Sara segue sua rígida doutrina calvinista, como  assimilara desde a infância, numa família de fanáticos imigrantes. Às vezes, até nutre curiosidade pelo mundo exterior, todavia sente-se confortável na moralidade resguardada pelas fronteiras da fazenda.
Ela jamais tosquiou-se; tem a cabeça (cabelos e orelhas) sempre recoberta por capuz, põe roupas em cores sóbrias e sem estampas, expondo apenas as mãos. Não canta, não achincalha e nem grita ou assovia. Assim exige igualmente dos medrosos filhos, que vêem na tia, o arco íris da afoiteza.
Focada no risco do pecado e na necessidade do perdão, professa uma teologia policiesca, cheia de ruindade com seus crentes, que sobressalta Blanche pela rigidez.
Um ponto nesta religiosidade exacerbada em que ambas concordam integralmente, é que o batismo vocacional nunca será a tendência desta. Os deuses indígenas são mais convidativos, propiciando um leque de opções.
É tão escuro lá fora, a ponto de se sentir o peso de um paredão. Nuvens se aglomerando, denunciam o iminente final do inverno. Nem lua, nem estrelas, apenas a cruviana madrugadeira chegando de manso, a varrer o terreiro, batendo porteiras e portõezinhos.
Sons estridentes de animais noturnos demarcando território e à procura de parceiros. O balido das ovelhas na pastagem próxima, formando um coral. O chorinho de Isaac, cansado pelo frenesi da noite festiva. 
E numa brecha, Nick arrasta Tom para a cozinha; apalpa-lhe disfarçadamente, como se campeando as cascas lisérgicas. Numa taquicardia, se contenta em respirar, rosto a rosto, seu nefelibato hálito sagrado.
Até quando a naturalidade? Assex até quando? Quando deixa de ser transparente?
De volta ao salão, num propósito, Blanche lhe empurra sorrateiramente sobre Tom. Quando amparado em seus robustos braços, a transcendência se faz em Nick, num êxtase de lisergia maior que as próprias bergamotas no cachimbo do desejado.
Para dormir, Nick adequa idilicamente duas redes emparelhadas (e enamoradas) num cantinho do salão. Proseiam desenvoltos, até quando aquele dorme profundamente, então este se ajoelha e o acaricia: leve, resoluto, por todo ele.
Insone e atormentado, vela longamente o objeto de esbraseante aspiração. O intrínseco amor não angaria exigências para se encetar, apenas escorre magrelinho com a noite quase perfeita.

Blanche 35: O bebê de Ariane

Num piscar, o sábado raiou sequinho e fresco. Tudo foi providenciado para o gostoso declive à fazenda. Blanche enfim apreciará o incógnita bebê Isaac. Um fofo tapetinho malhado foi confeccionado para ele. 
Ela manufaturou um borbulhante tacho de rapadura (sua especialidade), com azedinhas amoras silvestres. Presenteará as crianças Bencio, Verna e Roya, além de reservar um naco à sua família de origem.
O viçoso canavial que cultiva, à nordeste da casinha de troncos, assim como as outras plantações, recebe irrigação do regato que desce sobre a cabana e o anexo (o rancho anterior). Devido ao excesso de pedras, ele parece azulejado em sua extensão próxima à residência.
As águas cristalinas formam um espraiado a oeste, dando início a uma série de cachoeiras, que rompem o despenhadeiro a sudoeste, formando deliciosas piscinas naturais, esculpidas em momentos de tempestades.
A descida nesta tarde está perigosa: demasiada pedra solta, as pesadas rodas da carroça as atiram com violência às patas dos cavalos, que se assustam freneticamente, em meio à nuvem poeirenta.
Estão carregados com os apetitosos queijos ervados e um buliçoso cabrito corpulento para abate. As secas cascas de bergamotas para Tom e as interessantes sementes de especiarias (da horta do cotiguaçu) para Colen, não poderiam estar ausentes.
Na longa e lenta descida, Nick vai revelando `a Blanche o previsto destino da hermética Ariadne, aquela que o amara platonicamente, desde tenra infância. Deu à luz um entesourado menino, e ingere o pão que o diabo amolgou com as nádegas, pelo bronco marido.
Possessor de uma tropa de carga, cinge a região mascateando. Já em meia idade, de feiura caricaturesca, rosto pontiagudo e nariz mole, com minúsculos olhos (que se querem) amedrontadores.
A avó indígena sucumbiu antes da nascença do bebê, gerando flagelo em redobra. O esposo esteve comerciando nos dois episódios, deixando-a entregue à casualidade, que não a favoreceu. Acordada na rede ao lado da ancestral rija, apressurou-se a clamar por amparo.
Uma benzedeira carrancuda e baixa foi quem assegurou a morte, de supetão. Auxiliou Ariadne na inumação, no quintal da residência (em Corda Bamba), sob uma macaubeira. A neta fez a paga com um frango e uma galinha velha. Um canteiro floridinho recobre os restos mortais.
O menino demorou. Foram dois meses de vazia solidão. Inculcada pela avó, seguiu só e calada com as facínoras dores preliminares. Parede-meia, os moradores adjacentes auscutaram a derradeira agonia.
Mãe e filha vizinhas se aligeiraram a acudir. Com a ponta da faca, descerraram a frágil tramela que detinha a porta. Recostada ao canto do cômodo, agarrada ao portal por detrás, Ariadne e o garoto trabalhavam arduamente.
Saltitou em cócoras, porém meramente a cabeça vinha fora. A senhora ordenou que se dependurasse ao caibro do telhado, arrancando suas últimas forças. Foi esticando aquele corpinho, enquanto untava em banha de porco as entranhas da geratriz, arrimada pela filha.
Uma criança perfeita! Com os suaves traços maternos, miudinho e moreno. Os paninhos do enxoval Ariadne fez à mão, bem poucos por sinal. Complementava os cuidados, valendo-se de trapos que acumulou durante toda a gravidez.
Oito cueiros bordadinhos; duas toquinhas com orelheiras; três mantilhas bem quentinhas; uma dúzia e meia de fraldas (em pano próprio); cinco jogos de pagõezinhos e mijões com rendinhas delicadas, quatro pares de botinhas estampadas.
Teceu três redes para mantê-lo aconchegado, tanto em casa quanto no terreiro, enquanto realizava os afazeres. Lindinho vê-lo a balançar, na redinha presa entre dois arbustos, assistindo a mãe lavando roupas à beira do rio, sobre pedras.
O pai descortês, embora satisfeito pelo machinho, espancou Ariadne ainda no resguardo. Motivo frívolo, como sempre. É que a produção de bordados mingou e as encomendas se acumulam.
Todavia, quando o achavascado viaja, ela é momentânea serenidade com seu prêmio amarradinho ao corpo, à moda indígena. Acima de tudo, tece a mais linda e trabalhada rede para a filha da vizinha que a amparou.

9.1.14

Blanche 34: Cotiguaçu

Após o abalo emocional com o passamento de Tibiriçá, a semana fugira. Eric se foi após o acalantamento fragilizado de Blanche. Ela não declinou junto a ele, devido a duas frágeis cabras que aguardam parição, e nesta noite haverá mudança de lua.
Nick, todo aguerrido, surgiu empolgado com a noticiazinha do inusitado cotiguaçu. Ele é todo combalido pela cultura indígena. Blanche logrou o ensejo para acompanhá-lo e esmiuçar a mística vivenda do ancião.
Anteciparam o trabalho e desceram cautelosos, com a merenda: frutas passas e paçoca de carne seca com farináceos; por sobremesa, a amarguinha rapadura de cidra. Passariam várias horas no lesivo despenhadeiro.
Deixou que o  excêntrico Nick explorasse a alegórica ruína das viúvas, aproveitando para coletar especiarias na horta abandonada. Colheu delicadamente ricas sementes e deixou tudo à beira da trilha, para apanhar na volta.
Ofuscado, ele percorreu cada lapa, vistoriou cada desenho nas paredes, cada artefato. Na catacumba das múmias, horrorizou-se com a quantidade de infantes, embrulhados em tecido, agachadinhos como um punhado. 
Blanche, por fim conseguiu arrastá-lo rumo ao índio isolado. Reptando por entre as indóceis pedras, chegaram à pequena curva. Avistaram abaixo, o corpo tão magérrimo, mumificando-se ao sol, esvoaçando longos fios de cabelo cinza, através da brisa.
Depauperado, Nick, o pensador, saudou longamente aquela alma, solicitando a visita. Após a prece, seguiram na veredinha, até o complexo de cavernas talhadas no barranco. Um fascinante mundo se descortinara.
Havia rica cestaria em taquara, com diversos tamanhos, formas e modelos de tranças. Túneis interligavam os antros, com escadaria esculpida na fria terra lisa. Armadilhas e bodoques denunciavam a dieta de caça.
Uma das salas jazia repleta de peles, acusando ser o dormitório. A forma de curtimento do couro era similar à indígena, porém na caverna não havia utansílios em terracota. A arte do cotiguaçu era reproduzida em minúcias.
O inhame assado repousava num cestinho, aguardando paciente pelo possuidor. No terreiro, não existia traços de domesticação animal, nada obstante um roçado erguia-se viçoso em meio ao rego d’água puxado por Tibiriçá.
Blanche, sedenta, correu ao fiapo d'água, e aparando uma folhona de taiova com o líquido prateado, relou seu beicinho e sorveu. Na segunda leva, deixou o excedente para aguar a tosseira de melissa.
Voltando, notou sobre o fogareiro de pedras, apagado, um varal em cipó que acomodava a caça em processo de defumação. Até mesmo as tripas eram aproveitadas pelo ancião: enchidas com ar, dançavam ao toque do vento.
Nada de apetrechos ritualísticos, oferendas, xamanismo... viveu todas essas décadas sem cozer, apenas fazendo fogo e assando à brasa. Uma faca “de branco” era o único ferramental forasteiro na casa do asceta. 
A vista abarcava deslumbrantemente o vale, a leste e a sul. Com o sol decaindo, hora de retornar. Caminhada longa, ziguezagueando penhasco acima, a admirar a secura limpa e dourada desta estação fria. Nick, em êxtase, despediu-se cerimonialmente do (agora amigo) aborígene.

Blanche 33: O corpo seco de Tibiriçá

Na manhã seguinte, Blanche relata a Eric, o plangoriar que sobe a dias, da região onde se encontra a caverna do legendário índio isolado. Tibiriçá, à época da debandada rumo à reserva, alongou-se entre a pedraria.
Obviamente, não é seu nome de batismo. Trata-se de uma alcunha empregada pelos brancos para designá-lo. Ele não trava contato oral com ninguém; apenas ocular, e mesmo assim, a uma distância inteligente. 
Se estivéssemos em tempos modernos, talvez Tibiriçá fosse etiquetado como portador da “Síndrome de Asperger”, ou outro transtorno do espectro autista, pela ausência de interação social, mesmo quando cutucado.
Certamente octogenário, viveu todo esse tempo ermo. É avistado de tempos em tempos, subtraindo víveres nos roçados ou rondando as fazendas, para arrebatar galinhas, ovos ou qualquer outra vitualha que lhe apaziguar o estômago, sempre em deflação.
Blanche havia interpelado Tom durante a semana, contudo o mesmo desconversou camufladamente. Ela instintivamente intui a possibilidade do ancião estar enroscado pela ribanceira; provavelmente já não enxerga a contento.
Desde anteontem o lamento cessou, fato inquietante. Sendo remanescente indígena, Blanche crê ser Tibiriçá taumatúrgico, e não se outorga a omissão ao clamor de um ente quase imaterial. A total contragosto, Eric agiliza a ordenha das cabras e declina com ela rumo ao desfiladeiro.
Na trilha, repentinamente transpõe, estupefato, as ruínas do antigo cotiguaçu, um subsistente local isolado, onde eram enclausuradas as viúvas e crianças órfãs, à época indígena, pois traziam mal presságio, numa época de governantes divinizados.
Este cotiguaçu, pelas dimensões, comportava dezenas de mulheres e crianças. Numa espécie de controle de natalidade, as viúvas nunca mais se casavam. À borda, acima do abismo, há resquícios de roçado, horta, pomar e contenção de animais. 
As cunhãzinhas órfãs, florzinhas campestres ainda em botão delicado, ali perseveravam até lhes serem designados noivos, pelo autocrata Pajé da tribo, `a aguardada puberdade.
Os desgraçados garotos órfãos, aos nove anos, eram retirados para a urticante lida tribal, permanecendo agregados (servos) `as diferenciadas cavernas da elite político-religiosa. 
A monumentalidade da ruína aquilata o olhar. Um avarandado frontal subsiste parcialmente, ornamentado por tabatinga entalhada sobre taipa, aderindo as quatro lapas: lavor feminino meticuloso e estético.
Erigido para manter-se inexpugnável aos entes masculinos, recebeu uma farta muralha em pedras, que resistiu `as intempéries. Sua alma prodigiosa ainda pulsa com vigor, ecoando no escarpado. 
Seguindo a picada fina talhada por animais silvestres, Blanche conserva-se bem à frente (o cotiguaçu é banal para ela), ansia encontrar celeremente pistas do índio eremítico.
Após a curvinha fechada, a leste, avista um grupo de medonhos camirangas. Seu pressentimento indígena concretiza-se: Tibiriçá pereceu. Exora por Eric veementemente!
O escarnecido corpo seco encontra-se dilacerado entre as pedras do despenhadeiro...agora seu sepulcro. Após uma introspectiva prece à longitude, ela e Eric retornam mofinos, arrastando um vazio  tão pesado.

Blanche 32: Sara pari Isaac

Após boatos com o traumático falecimento da meretriz, na pensão, a pradaria se encontra em apreensivo suspense. Sobreveio a sôfrega hora de Sara.
Alexia, sua sogra (com óbito semelhante à cortesã), foi rememorada veementemente pela caseira Colen, a sós com Peter, em total vulnerabilidade.
Após semanas em “contrações de treinamento”, não tão indolores assim, estrearam enfim as secretas e verdadeiras escravas da dilatação, numa gélida tarde de terça-feira. 
Noite de padecidos agachamentos, plangores e caminhadas solitárias ao redor da vigilante cabana, sob uma lua anoréxica, à procura das melhores posições rogadas pelo corpo.
Por companhia, o horripilante trinar proferido pelo pássaro urutau (ave fantasma em linguagem indígena), que chacoalha o fundinho da alma, nos intervalos contracionais, ancorado ao topo do mourão de cerca.
A presença da ave estrambótica, de estética excêntrica, globo ocular colossalmente desproporcional, potencializa o insólito das madrugadas rurais, de negro cheio e oco.
A parturição acocorada, vezo regional herdado das indígenas, com ajoelhamentos intermitentes, transcorreu metodicamente, com um aflito período expulsivo de poucas horas. 
Em força descomunal, grudada à barra de madeira da parede, supervisionando seu próprio parto em detalhes, Sara mordia um nó, plangia, e apostava no sucesso da labuta do filhotinho.
Corpo cândido escalvado, cabelo em coque desgrenhado,  suor hidratando as ruguinhas do rosto, pés descalços com os dedos alavancados no rodapé e rústicos calcanhares suspensos...
Quando ele escorregou num estouro, apoiado pela gravidade e amparado por Colen, ambas se viram apalermadas. 
Ao crepúsculo assomou Isaac, um pequenino garoto transparente, de olhinhos vidrados a fitar a mãe, como se já a conhecesse a muito.
Após o desprendimento, a caseira fez-lhe a assepsia e o enrolou em algodão cru. Fragilizada, Sara clamou ao esposo Peter, e às crianças, que adentrassem o recinto para apreciar o bebê.
Logo após a mamagem do colostro, Colen irrompeu ao salão, apresentando o novo (e choroso) ente familiar ao grupo que aguardara o desfecho em tentativas de orações.
Finda aqui a infância de Bencio. Será o pagem durante e após o puerpério da parturiente. Por quarenta dias cravados, a genitora não se banha, alimenta-se com caldos, permanece ao escuro. Visitas são proibidas, por aduzirem mal agouro.
Os alimentos reimosos são terminantemente proibidos na dieta (quarentena): peixes e afins, carne de caça ou suíno, cítricos, tomate, pepino, ovos, pimenta, pois são considerados tóxicos: causam prurido e dificultam a cicatrização do parto. O inhame deve ser ingerido uma vez ao dia, para purificar o sangue. 
Enfim, com a bonanza, Eric alça-se à montanha. Irradia Blanche com o nascimento do neto de olhinhos que riem, todavia noticia também a morte da rameira. Edith e Judith, identiquinhas, foram adotadas por Helen (supõe-se que não para fins comerciais).

Blanche 31: Morrer de parto

Neste sábado frio e seco, em Riolama, a sineta não clamou fulminantemente... era apenas a insignificância de uma clandestina, então não houve jus à prece. 
Exausta com o arremate da prenhez, ela se mostrava ampla. Implorava auxilio a Emma e Noru. Dormir, somente aos solavancos, a imensa barriga pressionando rins e bexiga – ardor, inchaço, febres. 
Pela ausência de calcinha (à época), o sangue na ampla saia godê alertou-lhe. Chegara a hora! Em breve, as cólicas baixas gritarão. Helen e Holine entram em alerta ainda nesta quinta-feira. 
Emma jaz nas montanhas, à recolecção das abundantes e substanciais macaúbas. Serão extraídas suas amêndoas, que socadas ao almofariz encravado na pedra do quintal, efetuará uma proteica paçoca, com farináceos e as brancas larvas a temperar. 
Blanche, bem à distância, lhe acena o florido avental, gesto que Emma retribui. Noru idealizou-a com perfeição, e assim, sempre na longitude, são amigas “virtuais”: Emma e Blanche. 
Um hóspede javardo e macambúzio, ronda... interessado. E nuns gritinhos assustados, percebe-se as primeiras contrações rasgando com garra a região anal. 
Noru, experiente, executa à moda indígena. Arrebata a garota ao terreiro da pensão e tenta uma frenética dança, ao bater do tambor improvisado, sem aparente periculosidade. 
Intermitentes, as contrações bravias apertam e retraem, estraçalham a ponto de partir-lhe ao meio, em contorcidas dilacerações talhando as ancas. 
Em oraçõezinhas, Emily alonga-se no quarto, pelo desespero. Suas ligações neuronais a transportam a Corda Bamba, nos incontáveis falecimentos por parto do inferninho onde trabalhava. 
O inconveniente forasteiro auxilia a deslocá-la à alcova, após o frustrado trabalho de Noru em prol da dilatação. Em agonia, quase sem ar, solta urros nos segundos de padecimento dilatal, acocoradinha ao pé da cama. 
Uma sensação desumana e grosseira. Berros horrendos, enfim um punho de dilatação. Logo redunda em nefasta escuridão, quase desmaia. 
O lisérgico chá das cascas de bergamota selvagem. Incenso alucinógeno nefelibaticamente espalhado. Consternante impotência, passa o tempo, não passa a atemporal aflição. 
A insuficiência, fragilidade e morosidade das técnicas de parto, o esgotamento físico. Vai-se um dia. Intensas e avassaladoras, as dores quase perdem sua alentosa intermitência. 
Em força descomunal, sempre de cócoras, na explosão fônica, expele uma cabecinha. Os ombros não saem, não ultrapassam, estão enroscados... 
– Piedade! 
Um repúdio dilacerante, vocifera, achincalha, admoesta... se livra. A garotinha é expelida. Angústia estranha... Por que não acaba? 
A incúria das parteiras redunda noutra cabeça. Gêmeas? Ofegantemente, após quase dois dias, num lapso de garra e rugidos, enfiando uma mão nas próprias entranhas, escarra outro bebê. Muito menor. 
A dor foi arremessada longe, com Edith e Judith. Todavia sente algo jorrando, escorrendo... Emily, que covardemente adentrara a pouco, muda de feição. Apressada, retira as bebês do aposento. 
Visão turva, fugindo, Emma aperta-lhe a mão. As parteiras se acotovelam. A cunhã traz e leva panos, água fervente; bebezinhas chorando longe, longe... 
Questiona o constrangedor e flagelado segredo: Cachoeira hemorrágica. Seu útero exausto, dilatado e dilacerado, está aberto e expelindo sangue, feito esponja espremida, sem resiliência. 
Depois de tanto martírio? Dúvidas existenciais, palidez, assombro, impotência. Transcendência...
Fora enterrada, a pedido de Emily, junto ao pé de sabugueiro, ainda em brancas flores, a adolescente prostituída.

Blanche 30: Prostitutas de profissão

Na arruadela chamada Riolama, já temos um novo e aldrabão estabelecimento sendo erigido: “Céu Plantado” (reverendo Albert perderá o fôlego com a tendenciosidade da nomenclatura).
Não é o fato do pabulado inferninho ter pulado, com seus pretenciosismos, para além do sumarento regato chorão, que possa deter uma fugacidade segura.
Helen, em disrupção, segue botando as manguinhas de fora. Espicaçar suas ordinarices irracíveis e incumpridoras da decência, nem com incontinência verbal.
Charlote solicita mansidão ao esposo. O brotar de um vilarejo traz consigo estas facetas escuras e  a certo ponto, até necessárias. Homens vadios, em suas esferas incongruentes, são sempre inconvenientes e requerem atendimento sexual especializado, amenizando riscos de estupro.
Reverendo Albert, então abranda discussões ocasionais relacionados ao surubal em edificação, haja visto que localiza-se fora do povoado, cercado por muramento e distante dos bons costumes.
A taxa de concessão para funcionamento do pardieiro será fiscalizada pelos "homens bons" da localidade, provavelmente em forma de dízimo à igreja local, como qualquer outro empreendimento.
Os impostos dizimais são arrecadados anualmente pelo conselho de anciãos, e todo chefe familiar contribui. A forma de aplicação da verba em prol do bem comum, é decidida em assembléia.  
Noru, a cunhã, e mais duas mocinhas arrebanhadas em Corda Bamba (uma negra e outra grávida), rindo ou chorando, aperaltar-se-ão no plantel inicial do prostíbulo em construção. 
As três já habitam desgastadamente a hospedaria, e estão sendo devidamente adestradas aos fingimentos e subserviências, vaticinando o trabalho madrastal.
Noru, mascando desconchavadamente uma fruta, recostada ao portal, observa, em claustrofóbica confusão mental, as duas colegas confabularem.
Total inconveniência, Emma (ainda) donzela, de olhos perdidos, suspiro afogueado e fino, em luxúria pulsante, dar oitiva às sacanagens de homens de uso (“Zés Gostosos”), citadas pela incoercível rapariga amojada.
Noru bem atina o dispêndio da servidão a homens... causa-lhe ojeriza, as recordações das crueldades sexuais aplicados por seu feitor indígena. Caso houvesse opção, doravante tornaria-se assex.
Não contraria a opinião destoante da (embora adolescente) "mulher pública", plantada na ainda inócua cabecinha de Emma... saber saborear o estranho ofício de cortesã é privilégio para escassas profissionais.
Ao inaugurar o inferninho, provavelmente já terá eclodido a cria da meretriz habilitada, e será entregue em adoção a qualquer família, em total pragmatismo.
A bela e negra garota Emma é púbere imperita. Embora não saiba da repugnância que o ofício possa apresentar, indubitavelmente não conduzirá o grupo de quengas, quando da ausência de Helen.
Será decepcionante, caso algum dia Blanche trave conhecimento, aturar o inamigável destino da (não bonita) cunhã, a quem acudiu na montanha. Após tanta borrasca, lograria-lhe  sina mais branda que esta tareia.
Blanche, nefelibaticamente colhe uma flor, a pensar na áspera e mirrada cunhã. Bem gostaria de angariar companhia feminina, naquele isolamento montanhês. Alguém para confidenciar, repartir afazeres, talhar uma trança ao cabelo, enfeitada por aquela efêmera flor...

8.1.14

Blanche 29: Casórios

O domador de cavalos Dory e sua linda mestiça indígena (Brenda) se casarão provavelmente no próximo biênio, conjuntamente à irmã Criscia e Lucano, que já se vê com o corpo inteirinho feliz. É praxe da região, juntar casais num só conúbio. 
Aguardam ansiosos, a primeira menstruação da mirradinha morena Criscia, de longos cabelos serpenteados e atitudes quase infantis, sem a qual nenhuma púbere nefelibata é consignada ao noivo.
Alguém dentro da agradável e obstinada Brenda diz que viverá asperamente na rude estrebaria, ao passo que a futura cunhada, em graça maior, seguirá para a nova existência, como atendente a abrilhantar o armazém.
As festas de himeneus consistem na celebração religiosa exatamente ao por do sol de sábado, com valor civil. Um animado baile com músicos locais, no anexo da capela, começa quando o escuro traz emoções cortantezinhas.
Não há convidamentos, nem dádivas aos nubentes. Devido à função civil, ao festivo toque da sineta, cada clã obrigatoriamente envia seu principal membro masculino, com ou sem acompanhantes.
Serve-se bebida alcoólica artesanal e alimentos de época: pipocas, castanhas, abóboras (cosidas) com mel. O sacristão Karly vai aguando o recinto, para abrandar a poeirinha causada pelas botinas em terra nua.
Estes casórios são  raras ocasiões de encontro e festejo para os jovens da vila, que vivem em solidão profunda e vazia, quase árida. Jamais perdem a oportunidade, a menos que os malvados pais proíbam... 
Após horas de algazarra, mulheres desgrenhadas dormitam no piso da igreja e homens suados instalam redes no anexo, resfolegam até o primeiro alvejar da aurora; quando se retiram para assumir em pormenores, as tarefas rotineiras.
Alguns casais adolescentes, enamorados, apenas fogem, num silêncio de acordar o mundo, e se "amigam". Burlam todos os trâmites matrimoniais. Habitam a princípio, uma das invulgares cavernas esculpidas por indígenas, feitas camafeus emoldurando interrogações. 
Galgam um espinhoso período em total degredo, subsistindo de caça, pesca, insetos, folhas, raízes e amêndoas de palmeiras. Ao nascimento do pranteado bebê, legitimando a família, vão retornando paulatinamente à comunidade em apelo de paz, onde recebem guarida.
Ariadne, sua irmã Criscia e Brenda, a futura cunhada desta, eram as prestimosas alunas de Ingrid, Juntando-se a algumas mulheres casadas. As três mocinhas valeram-se de seu precioso auxílio para prepararem o artesanal enxoval de casamento da primeira. 
A competente professora, detém a máquina de costura do vilarejo: toda verde, alegre, uma tecnologia; alguém gira a manivela, enquanto ela manobra a peça a costurar. Arcaicamente, as outras mulheres cosem minuciosamente à mão, ponto por ponto. 
Por hora, as aliadas Criscia e Brenda encontram-se sós na idílica empreitada de seus enxovais, devido ao casamento de Ariadne, a mais experiente. Ingrid, perfeccionista, as segue proximamente, com orientações pontuais. 
As roupas “da noite”, introduzidas na vila por Ingrid, consistem em alva blusa manga longa, atada à cintura por fita, e calçola bordada presa sob o joelho, com um orifício circular na região interfemoral, para a drástica perda de virgindade. 
Na manhã seguida às núpcias, em embaraço descomunal, a calçola é exposta ensanguentada à janelinha do puxado (alcova) do novo casal. Caso a operação não se concretize nas primeiras noites ao tálamo, a aflição ataca os ansiosos familiares.
Não há lua de mel, tudo é rotina imediata; a nova vida das noivas em casa de sogros, faz-se ainda mais severa que aquela em solteiras, quando com coraçõezinhos esvaziados. Retribuem a dura paga feita em bens a seus lacônicos pais. 
Somente após o brotar de alguns mirradinhos bebês é que podem apartar cabana, no ansiado de seu viver, adquirindo desafrontada independência.
A venturosa Blanche se aloja em voo na montanha dos caprinos, porém oficialmente, seu lar é a estância da pradaria, juntamente à destemerosa família do “esposo”. 
Ela escapuliu ao fatídico ritual por não ser urbana, onde a regra se aplica mais estritamente. O fato de não possuir sogra, facilitou-lhe sobremaneira a vivência de eremita indomada, restando apenas Peter a tentar lhe "torear".

7.1.14

Blanche 28: O inferninho

As imensas e silenciosas pedras soltas naquele arruadinho chamado Riolama, constituem um exprobro a muitas construções, porém trazem uma viva e mística poesia ao vilarejo, entremeando excêntricas e aromáticas arvorezinhas retorcidas. 
A descida embirrada do regato chorão, num profundo e fininho rasgo rumo ao ardoroso rio, cria um cercamento natural, todavia em ocasião de chuvas caudalosas, torna-se de imediato, feroz e intransponível, deixando enclausurada a população.
Entronizado por todos, o Reverendo Albert, num constante suplício, tenta adstringir a região efervescente, estimulando cooperações, amenizando conflitos com os inimputáveis indígenas, formando parcerias que tornem a vida mais palatável. Suas fúcsias bochechas vão-lhe à frente.
Não vê com bons olhos a ardilosa aquisição daquele cantinho de pasto, feita por Helen para encarcerar “mulheres de uso”, sob pena de atrair má fama e forasteiros indesejáveis.
Embora o fogo no linguario das beatas não tenha ainda se alastrado, devido ao breve sigilo, quando a casa florescer, o bafafá ganhará quatro ventos, como num golpe de raios tempestuosos.
Mal empregado o nome, Tirania, uma vistosa índia mansa, tolerada na vila, vem a tempos prestando seus favores carnais numa caverna (uma "cratera" estranha), despencando no penedo longínquo.
Em passadas estradeiras, alguns homens imparáveis se dirigem sem pabulagem àquele ermo, em procura de Tirania. A paga rasa, sem quebrar o escuro da profissão, dava-lhe minguado sustento.
Quando na vila, a branca casela for erigida, com as ansiosas janelas azuis se chacoalharem no aguardo de fregueses, o paviozinho será aceso e não haverá aceiro que o contenha.
Por outro lado, os cruéis estupros rurais e raptos de cunhãs à borda da reserva podem vir a diminuir: os homens inuptos (e não só) terão um local propício para ganir em descarrego.
Com as pontinhas dos dedos acariciando o miolo de um belo girassol, Reverendo Albert aguarda o desfecho do inferninho, assim como quem aguarda a prontidão daquelas sementes, numa gula desvairada.
A carne e o espírito desfilam ali, num vai-vem esbarratório de pés embriagados, sem direito nem avesso, que Helen pretende apascentar com finas bebidas angariadas em Corda Bamba. Temperadinho no álcool, tudo é tolerância.
Blanche, inocente do caso, jaz numa intermitência entre o mundo branco e o indígena, e procura desdramatizar fatos que ocorrem cá e acolá, sendo ela própria esta mixórdia de culturas. Vagando em devaneios pelo terreiro, dá um pontapé num graveto de goiabeira...
Vai desamesquinhada, alastrando como ramas de batata-doce, a lancinante aceitação no equilíbrio da miscigenação, num lodaçal de intolerâncias. O obediente graveto rola translúcido, abandonando as folhinhas secas.

blanche 27: A cunhãzinha

A dias, Blanche vem observando um voltinho feminino, alongado na ribanceira acima. Na madrugada, ela ouviu o latir dos cães, de enxoto, voltado para o poente. Talvez a mulher tentasse infrutiferamente, furtar alimento.
Ali existem diversas mini cavernas, escavadas a tempos por indígenas, e de quando em quando, aparece um  desenfreado bugre adolescente, desgarrado da reserva, anciado por feroz desbravamento.
Todos chegam furtivamente pelo trilho fininho, feito espinho de macaúba, usado a gerações em busca de caça na floresta densa. Em certos pontos é tão profundo, que chega a encobrir os joelhos, se olharmos de perfil.
Blanche carrega, exponencialmente, a fama de coiteira, assim como a avó, porém não é inteligente dar ciência a Tom, o agregado, sobre a estranha presença. Embora ele seja cafuzo, um meio-sangue de morenês fechada, Blanche preferiu aguardar sua descida à pradaria, para fincar contato.
Aproximou-se a uma distância segura, com alimentos à vista, numa urupema, pois é errôneo considerar a floresta uma dispensa a céu aberto. Insetos, raízes, cascas de árvores e castanhas de palmeiras, compõem a dieta dos foragidos, quando não caçam pássaros.
Água e frutos são escassos, a ponto de se ter que lamber as gotas de orvalho nas folhas das plantas, antes do arrebol. A uivante cruviana, que sopra bem antes do cantar do galo, enregela a carne e os ossos de quem tenta dormir ao relento.
Aos poucos, houve o êxito. Blanche entende perfeitamente o linguario da cunhã (que aparenta quatorze anos), devido ao bilinguismo de sua mãe e avó. O difícil é se fazer entender, pois deixou de praticar a enroladinha fala índia.
Com auxílio de gestos, atinou que o errante marido índio (isolado) da cunhã, após roubá-la de tocaia na tribo, sem aranzé, macerava-a ininterruptamente no relho, onde urrava internamente e se encolhia, as cicatrizes se alastravam. 
Enquanto o sangue porejava, engolia e regurgitava a prantina, tantas vezes, a ponto da mesma secar em suas entranhas. Dor atrevida. Viviam bem afastados da grande aldeia, onde ele a mantinha deliberadamente reclusa.
Pelo prolongamento das mamicas, cujos mamilos se aproximavam do umbigo, Blanche notou que houve recente parição. A cunhãzinha confessou ter sacrificado friamente a criança, herança daquele demônio.
Fugira ainda mojando, e embrenhada na mata a semanas, sem repouso, recebeu precocemente as dores da prenhez, turvas feito enxurrada forte, julgou inclusive estar doente do estômago. 
Deu cria àquele "vermezinho" miúdo, vivo, rasgado dela, macho! Estrangulou-o em instantes, e cobriu o corpinho com pedras, sem carinho. Seguiu viagem rumo ao nascente, em busca de abrir brecha para a vida.
Retornar à aldeia seria perigoso, mesmo empinada em sua solidão deveras robusta, pois numa montoeira de brabezas, os aldeões acreditariam que poderia lhes levar terríveis maldições.
Após convencê-la a descer à cabana, blanche instalou-lhe uma rede ao alpendre; não é seguro botá-la de dentro. Pela manhãzinha, serviu-lhe a mistura de farináceos socados na carne seca (paçocada) com  bananas e garapa fumegante, escaldada dum talho de rapadura.
Anunciou num jorro, a breve chegada de Nick, seu cunhado. Ele informa que Helen, a pensioneira, almeja uma abnegada ajudante para sua funcionária (amigada) Emily, pois a freguesia aumenta. 
O que Nick fez questão de omitir à Blanche, é que Helen, a pedidinho miúdo da clientela, pretende formar um plantel de raparigas, e montar uma casela (inferninho) do outro lado do atrevido regato chorão. 
A dupla passou a semana fornecendo lições básicas à selvagem garota, para soltá-la à civilização. É certo que Riolama não passa de um arruamento minúsculo, contudo civilizatório. 
Lhe ensinaram algumas palavras-chave, posturas sutis, afazeres domésticos elementares. Temerária, todavia determinada, a pobre absorvia feito esponja, enquanto a carne tremia nos treinos. 
Entregue ao fogão, expeliu uma comida (feia) com aspecto estranho, denunciando má higiene. Nick negaciou, banhou em pimenta, engoliu, teatrizando boa cara, guerra abusiva ao estômago, numa fisgada vaga. 
No sábado, costumeiramente, Nick declinou à planície, e foi logo campear por Helen. Ao primeiro barrado de luz no horizonte domingueiro, blanche levou a cunhã a uma veredinha magra, que os gatos do mato talharam. 
Ela leva, pela perambeira, até os terreiros da vila, onde a menina será aguardada por sua futura patroa. Vai deslizando as nádegas, ninada de vento e de mãos vazias, somente com ornamentos e a túnica indígena doados graciosamente por Blanche. 
Nick batizou-a “Noruega”, Blanche estranhou. Ele informou ser devido a um local distante, também com indígenas, compridinho e fino (tipo uma lagarta com a cabeça voltada para o sul), de paredão a olhar sempre o oeste, clima malévolo, onde se passa fome. Ouviu do novo ferreiro de Willy, muito sofrido e culto, emigrado de lá.

Blanche 26: Costura

No tremulante arruado rural, o terceiro e último estabelecimento embarafustado adiante, também emoldurado pelo enovelado regato chorão, é a recém inaugurada (e necessária) alfaiataria.
É patrimônio de uma polida família negra: O letrado e milimetricamente minucioso Benhur, de porte diminuto, semblante pesado, palavras cativantes e o hábito de calcar o lábio inferior com os dentes incisivos laterais, alternadamente.
Sua irmã Shoe, ainda encantadora quadragenária, de esverdeados olhares agateados, descendo ao colo em recato,  solteirona e deficiente auditiva, coabita esgazeadamente junto a eles.
Encarrega-se dos afazeres domésticos e auxilia a cunhada na criação dos meninos Rick e Hírax. Em cada momento vago, dirige-se ao atelier e arremata as peças mais delicadas, com miudinha perfeição transcendental.
Sua comunicação gutural e gesticular, moldada ao abrandamento, não escandaliza e rapidamente se faz espontânea e de fácil entendimento, personalíssima ao interlocutor.
A esmerada e complacente Ingrid, esposa de Benhur, costureira e professora destas artes, altamente subordinada ao nevrálgico olhar marital, tem altura mediana, excessiva magreza, feito um capim panasco.
Grata demasiadamente pelo exponencial apoio da altiva Shoe, se ampara nela quando o esposo, alterado pelo secreto vício à bebida artesanal fermentada (alcoólica), invade sua oceânica alma.
Ingrid nunca reclama, nunca diz maledicências, sorri encolhidamente, mas sorri sempre. Desfrutou infância difícil e rende graças pela existência  privilegiada que alcançou, apesar da consumição.
A alfaiataria comercializa tecidos e aviamentos com audácia mercantilista. Um avultado devaneio para as mulheres roceiras, que nem sempre o concretizam, espionando ao longe, e desertando subjugadas à falta de numerário.
Blanche procedeu ao escambo de um suave vestido, por um airoso e amplo tapete para a alfaiataria. Os modelos são fulcrais: blusinhas em mangas longas, acinturadas, e as saias fartas, ansiando em varrer o pavimento. 
As cores escuras são favoritas, devido à complicação na lavagem de roupas à mão, naquelas tingidas terras secas. Um tom escuro de verde, com tímidas e esparsas florzinhas do campo, foi o tecido eleito.
As provas de roupas são diversas e extenuantes: tudo é detalhado, refeito, ajustado. O fato de Blanche comparecer escassamente àquele arruamento, faz com que alguns estágios necessitem ser galgados.
Enfim, aprontado... comporá um harmonioso par com as nupérrimas botinas. A garota, enviesando um sorriso, anseia que Eric fique visivelmente surpreendido, e cada vez mais a contemple em plena e sedutora mulher feita.
A flecha ervada desferida contra Eric, à maneira indígena, escaramuçando e debulhando seu coração, envenena-o um golezinho mais, no lastro amoroso.

5.1.14

Blanche 25: Cavernas indígenas

Na comunidade Riolama, famílias multiétnicas são habituais. Os homens, incoercívies, vêm sozinhos, ininterruptamente à região e “permutam” a esposa que possuir preço menorzinho, dentre indígenas ou negras, pouco importa. 
Devido à ascendência materna, a família de madeireiros nutre encantamento pelas insultuosas cavernas acima de seu quintal, abundantes e inusitadas, de negra melancolia.
Toda desapressada tarde de domingo exploram-nas idilicamente, desaparecendo silentes das vistas do mundo. Deslizam pelos estreitinhos, esfarrapando as gritantes desmentiras de grotesco "povo bicho". 
Algumas múmias naturais, parcialmente preservadas pelo clima seco das encostas arejadas, são de encarquilhados idosos e acidentados e ainda “vivem” assustadoramente em seus aposentos, no interior das tendenciosas lapas. 
A ulcerada subsistência, incluindo consumo cotidiano de insetos, feito crocantes tanajuras e delicadas larvas, não permitia aos indígenas, manter seus anciãos quando improdutivos, assim como os indivíduos inválidos. Exasperados acidentes eram corriqueiros nestes elevados. 
A eles era providenciado, em odres e embornais, estoque razoável de água e alimento, em uma minúscula gruta retirada. Ali permaneciam isolados, numa dolorosa lamentação, ou com um caritativo ente estimado, até perecerem atrocissimamente. 
Abundante material lítico e utensílios em terracota, cheinhos de entalhes, encontram-se junto às suas desidratadas múmias, murmurejando felizes a parecer puxar agrados.
Ferramentas em pedra debitada (visto que não conheciam o metal), rica cestaria, tecidos rústicos, peles lapidadas, unguentos, adornos, entalhes em madeira, estão furiosamente espalhados. 
Pequenos silos e cacimbas para acondicionamento de grãos e água, são vistos intercambiando-se entre as catacumbas, sempre encravadinhos por entre inóspitos barrancos pedregosos, desvalidos de vegetação, parecendo flutuar escorchantemente. 
Vestígios de reduzidas plantações, rodeadas por esparsas e estéreis árvores frutíferas, também se salpicam cá e acolá, inclusive com rudimentares sistemas de irrigação, semelhando rabiscos.
Muretas de pedras meticulosamente empilhadas, com os vãos das porteirinhas, ainda formigando vida no macio das gramíneas amareladas, revelam a domesticação descricionária de animais. 
As transcendentes cavidades são afastadas entre si, e algumas, visivelmente destinadas à suprema casta nobre, de inteira inflexibilidade: maiores, adornadas nuns sofismas e em locais privilegiados, mais próximas à água e em vistosos planaltos com mirantes. 
As escadas eram economicamente escavadinhas na própria terra, no lajeado de pedras ou feitas com cordas de fibra vegetal, onde de quando em quando, havia nozinhos para, numa descompostura, apoiar mãos e pés.
A arisca avó de Blanche era ainda criança quando, exasperados, bateram em retirada rumo à reserva, por detrás das montanhas, todavia lapsos de memória invocam a coercitiva procissão lamentosa, envolta em cânticos xamânicos e transes intermitentes.
Nos infinitesimais relatos revivescentes de sua memória amalgamada à imaginação, sempre exposta aos desmandos da natureza soberana, avó Lisa sonha com a devaneante época dourada.
Na planura do vale ou na ondulação das montanhas, que sempre adivinhamos lindas, ela esculpiu um passado que entrava fricativo pelas narinas, ouvidos e toda a pele. O ideal sobrepondo o real.

Blanche 24: Madeireiros

Neste adelgado vale abraçado por montanhas, temos a segunda propriedade "urbana" rumo à encosta: a rudimentar e recalcitrante madeireira do consciencioso casal Green e Zina.
Ela, uma indígena comprada (fato corriqueiro) e amplamente querida, quase uma exceção, adaptou-se naturalmente ao modo de vida europeu implantado na pradaria.
Um fator preponderante para a convivência pacífica de Zina foi o apreço despendido exaustivamente pelo esposo, que apenas homens com nobreza de alma alcançam.
Vista ao longe, vagando com as botinas negras, vestes estampadinhas recobrindo os membros até o final, lencinho branco à cabeça, tapando recatadamente as orelhas e densa cabeleira negra, nem se assemelha a uma índia.
Com o casal, congregam os celebrados filhos Brenda (noiva de Dory), Asper e Torben, e o rosado avô Lars, cabeleireiro masculino. `As mulheres, vistas como castiças desimportantes, não se permite tosquiar-se.
A Green, o que farta em cavalheirismo, escasseia em empreendedorismo. Embora exímio artesão, não domina a madeireira com punho cerrado. Na visão dele, dias iluminados existem para serem degustados. Seu pai Lars aposta nos jovens netos para o promissor futuro da empresa.
O azul viciante de seus olhos misturou-se ao negro supremo do olhar de Zina, conferindo às íris dos filhos estranhos tons agateados, que mudam ao longo do dia, conforme a insolação.
Os cabelos, dele clarinhas e encaracoladas penugens, e dela tão indígenas, forjaram nas crias todo tipo de nuances: Brenda com revoltosos fiozinhos cor de mel; Asper com potente cabeleira escura; e Torben numa espécie de ruivo mascado, com mexas aloiradas cá e acolá.
Os minguados conflitos familiares, geralmente apaziguados pelo avô, giram em torno da constante falta de recursos financeiros e da manipulação de duas culturas tão distintas entre si.
Green, adepto à tolerância devido a educação calvinista, sempre propõe. Zina, absolutista e de cultura tribal, por vezes se impõe. O tempero cabe a Lars, que recorre cuidadosamente às crianças para encontrar o fiel da balança.
Em Riolama, construções em madeira são uma constante. Silos, galpões, residências, abrigos de animais, são entabulados com as árvores abundantes das florestas locais. 
Numa impressionabilidade, os indígenas, anteriormente à reserva, habitavam escrupulosamente as cavernas esculpidas nas encostas, utilizando parca madeira. Numa polivalência, preferiam extrair frutos, cascas e raízes de suas intemeratas árvores.
A arenosa terra da encosta, propícia à escavação, gerou inúmeras cavernas, em tamanhos e formatos diversos, borbulhando feito olhinhos curiosos a espreitar a planície. 
Paredes eram formadas com adobe (barro e grama), e pedra amalgamada. O sincretismo de materiais em colóquio permanente, deixava as construções excêntricas e artísticas. 
Prodigalizando, as resistentes raízes, ossos especiais, fibras tecidas, grandes sementes e madeira retorcida eram entrelaçados em partes do adobe com intuito estético. 
Coloridas pedras polidas, angariadas ao “báculo rio” serviam de arremate. Outrossim  criavam desenhos nas paredes escavadas, feitos com terra colorida misturada a gordura animal, dando um sabor à fruição. 
Num magérrimo sorriso, Blanche sonha com os fragmentos desta época longínqua, contemplando as ocas encostas fantasmagóricas. Esta menina tem perdido parte de seu ar vadio e despreocupado... 
Envolta numa mexediça nuvem refulgente, Blanche, com sua crescente maturidade, lentamente imprime-se um porte senhoril que subtrai-lhe parte da graça, podando suas asas de veludo: ônus e bônus. 
Os pensamentos amarfanhados e poéticos, vão embaindo-se com atitudes prudentes. O amálgama denominado Blanche transborda em congestionantes tateios rumo à vida adulta, a existência descuidadosa afasta-se mais e mais.