27.7.14

Blanche 55: Enfim, Tom!

Tom subiu inocentemente no arpejo manso das ferraduras, e na montanha, sem enganar os pesares, Nick defronta-se agora com a consequente complexidade abismal dalgum ato mais ousado. Metodicamente, baixa o resignado pedinchão olhar de cobiça.
Agir é tão árduo quanto torturar pedras em nuanças grisalhas, contudo sua força em desejar e fraqueza em resistir ao ser desejado expulsa qualquer pontinha de brio. Serrazinado com o inconfessável sonho de concubinagem, treme-se todo o interior, escoltando um perturbador olhar oblíquo.
Nick se apodera febrilmente de esperanças, numa satisfação violenta e picante. Recrudescendo em sua perseverança, ergue esforço inquebrantável com eterno ar de cobiça, possuindo Tom em avidez, tão apenas com os olhos compridinhos, nunca com as comichosas unhas.
Em tramontana, suplanta freneticamente meras torpezas carnais que tornam o sangue trescaldante, para obcecar e umectar o hipotecado espírito. 
Então,  em respiração convulsa, passeia a língua úmida e em brasa, deliciosamente pelo próprio antebraço, enquanto o venera ao longe com coração prenhe de desgostos e sobressaltos.
Desassombrada quase manhãzinha seguinte, com os miolos estorricados a marulhar em meditação, vai apeando-se da rede em estupor, lutando suplicantemente com o objeto querido de sua existência, na gula viçosa daquela flor noturna quase translúcida em tostada nudez.
Sente o trepar de um formigueiro assanhado coxas acima; todo ele a pedir seu homem, apertando os beicinhos, aborrecido. A espacejada e circunvagante coragem não vem. 
Tom todo é alheio absoluto àquele quase prazer amplo, sorvido sem respirar, de ente eleito para miminho ternurento... Tom é torrencialmente de Tom! E só.

9.7.14

Blanche 54: a caça de Nick

Notoriamente, a dupla Nick e Tom se amofinaram com a notícia da partida do indiozinho. Tom, bem a fundo, ansiava embrenhar-se no sombrio submundo de suas origens maternas. Nick, vocacionado à fruição estética, estimaria conviver alguns dias na reserva, sorvendo profundamente toda a milenar cultura ali impregnada.
Já no enregelante inverno, Nick, em desatinada concupiscência por Tom, ousou desacovardar-se e solicitou, em palavras constrangidas, uma gentiliza à Blanche: que ela descesse à civilização, sob pretexto de estrompamentos constantes. Toda uma semana na deleitável efervescência da pradaria, junto à Eric.
Tal ato, faz com que seja afreguesado por seu venerado amigo, procurando desengastalhar comprazeiramente o reticente relacionamento. E num voo à cabana velha, ajeita meia dúzia de livros e afofa uma almofada em chitão. Arrasta o caixote e escancara a porta, pedindo excelsante ar fresco.
Na ânsia por assenhorear-se da exuberância brutal do amado, o sangue latejava-lhe, rogando aquele homem gotejante em suor pela constante labutação. Supondo-se afrontado apenas pela implacável floresta, fica mais e mais possuído em ferrolhos de delírio e ardor pelo inocentezinho.
A espera infinita: cunha maltratando a fenda... um chá fumegante, as lisérgicas cascas das mini-bergamotas sobre o caixote. Um recender de melissa  bloqueando o raciocínio. A parca mobília em gritos, enquanto  a cruviana a chacoalhar a rede, vai fugindo pela janelinha aberta.
Chafurdando-se em fantasias de lubricidade, que excessivamente lhe assanhavam o desejo da carne, num fremir que punha e dispunha engenhosamente da imagem poética do outro, em devaneios, apalpando-lhe a saborosa quentura do corpo, sugando-lhe o vigoroso néctar dos lábios, sentindo-o na rede, pleno e nu.
Os cães a latir no ar seco e uma teia inacabada refrata a luz. Uma bigorna a esbofetear-lhe o crânio enquanto o coração desce ao estômago; cavalo com bilhão de patas a cavocar vigorosamente o trâmite rumo à montanha. Pujança, moço! Esturra num escandaloso monólogo. 
Mais tarde, defrontando-se com a renhida realidade, a contragosto se encontra numa miuçalha e logo se vê instintivamente mareado pela possibilidade de lapsos e perjuros, dissipando em rezingas a regalia de arquitetar seu ansiado par naquele extenso chão vazio. Vê-se sorrindo sem rir, entre prantos e rejúbilos.

2.7.14

Blanche 53: Ele se foi...

Numa prosaica manhã outonal, assim nos sopetões da vida, um trio indígena, exibindo fumaças de nobreza, aguardava na cabeceira da mata. Com estridentes e pressurosos estalidos entreconfundidos, clamavam pelo garoto, que encantonado, se agitou em sobressalto pelos jorros de luz solar.
Era a somenos e descrente semana de Scott, o subserviente e enfarruscado "esposo" de Blanche. Os insondáveis mistérios que os envolvem, voltarão a reinar escancarados na solidão da alcoviteira montanha.
Ela voou até a tulha, o indiozinho excogitava apressado; um ardoroso olhar de filho que ama sem querer, tão comprido e pontiagudo, lancetou-a em mil palavras mudas. Qualquer som é contra producente...
Aquiescendo, azafamou-se à cabana de troncos, colheu vitualha de matula e acrescentou um tapetinho rajado, no formato circular. Configurava uma mandala em tons degradê puxados do branco ao centro, até o negro arrematando as bordas, sem nunca deslindar-se. 
Entregou-lhe a simbólica peça, banhada em bagas de lágrimas, orientando que o tivesse sempre... aquele delicado desenho circular simbolizava a perfeição daquela convivência trimestral, o infinito daquelas trocas culturais e a transcendência daquela amizade rudimentar.
Numa assestada reverência, o menino puramente sensível fez alusão ao querer paternal que dedicava a Tom e Nick, entregando às trêmulas mãozinhas de Blanche duas tornozeleiras fertilmente trabalhadas. A ela, devotou uma mínima estatueta de suçuarana, entalhada minuciosamente em madeira nobre.
Sem sofrear, picou a ressequida trilha num tropel triplo com apoio de cajado, carregando a matula, a tatuagem escarificada, as escanhoadas vestes rústicas e o tapete penso a um ombro. Carregava uma história de cooperação, de compadecimento, de humanidade pura.
A certa altura, prestes a embrenhar-se entre as enralecidas pedras, retrovertou lentamente o corpo num aceno tão afilado e pusilânime, entretanto tão pleno de efervescente comoção. A anfitriã abanou-lhe o avental, e a brisa, abelhuda que só, encarregou-se de agitá-lo compassadamente, enquanto o vulto sumia.
Reaparecendo em verossimilhança bem acima, próximo aos altivos acompanhantes, formou um escultural quarteto laureado pelo contrário sol matinal, já canículo. Espoucaram-se no viageiro batido da mata, restando apenas o fantasmal silêncio e funil de escuridão por detrás.
Cá abaixo, em meio a raios solares ainda mortiços, tingindo de ouro velho o curral, num relance, Blanche voltou-se de soslaio a seu outro desacertado garoto. Desenvolto, ordenhava as cabritas displicentemente, dirigindo-lhes chistes ingênuos e insossos.
Quebrou o  turvo mutismo do dia cascateando em voz lacrimosa e robustecendo de arrosto um possível presságio desdito. Seus olhos saltaram indagatórios pelo vão da janela que dava ao velado. A sagacidade e argúcia do  assenhorado indiozinho se encarregará de cuidá-lo no recôndito ermo.

11.5.14

Blanche 52: Aridez

O inverno se aproxima de soslaio e o ressecamento do solo, de arrasto desde o estranho verão, arrocha ainda mais o cenário pedregoso, levando a vista a alcançar longas distâncias vergonhosamente nuas.
A pastagem amarelada e rala, a suspirar por esmola,  não supre as necessidades alimentares dos equinos, caprinos, ovinos, bovinos, muares e alguns mínimos bubalinos de Riolama, em pânico alvoroçante. 
Já magricelenta, parte dos rebanhos segue em comboio rumo à Corda Bamba, sob miseráveis farrapos de nuvens esvoaçantes, no único branco anilado a marcar o panorama acrômico. 
Resguardando os olhos do solão rutilante, os condutores, dentre eles o determinado Tom, se habitam sob imensos chapéus de palha crua bem trabalhadinha em sofisticados desenhos geométricos.
A toada rala e rastejante segue intermitentemente, com paradinhas abaixo de escassas árvores desfronhadas, quase defuntas pelas constantes podas pro de comer aos bichos. 
No pouso noturno, se valem de taperinhas viúvas à beira da ruivíssima estradica, entulhadas do nada. Na noite fresca, um céu de transparência doída chamuscado de sóis afasta a esperança de um sertincerto abluvião tardio.
A valia dos judiados animais cai abruptamente, e a iminência de mortes é escandalosa. Os condutores, serzinhos tão descomplicados, tentam criar ideias de forças atávicas para próprio uso, expulsando agouros preconcebidos. 
Um tropel de cavalo crioulo desloca uma verruguinha ali negrijando entrecortadamente na noite sertaneja, numa perfuração da estática paisagem: é Peter que retorna em vagia, após negociação árdua de somente parte do plantel. Desquebrantou a fascinação dos agregados, ávidos por notícia enfatiotada.
Atochados ao torrão duro e recobertos apenas pelas lufadas da cruviana madrugadeira, dormitam até que o grosso da noite se afaste. De supetão acordam todos, estremunhados com o pedante estridular do urutau, num toco estéril. 
Em voz pastosa e bocejos rasgados, vão escorregando os bons dias habituais e cuidando da lida, enquanto o rubro do sol tenta clarear canhestramente o serrote magricela. Uma ovelha tão lanzuda chamada cinhaninha, está de mal a pior, e seguirá montada à burrica, em intensa tentativa de salvação à criaçãozinha. 
O rio orgástico anorexou-se num impotente filete d'água, onde no arrebol, um garoto encardido, com uma cabaça, colhe goles. É prá lavar a ramela da cara dos peões e derreter a rapadura deliciadamente num caldo fumegante. 
Após a tamborilante reza mastigada e dolente, aos punhadões, empurram a nutritiva paçoca de farináceos com jabá e oleaginosas. Um cão enfurecido arrebanha a manada, explodindo em brutalidade, tão delgado pela ausência de caça / alimento.
Num esgar opinioso, o gado emurchecido refuga diante do desapiedado capim seco oferecido sobre um chão semeadinho de pedraria, mais nada. Um dos moleques, correndo desatinado, ataca o  lagarto teiú e salva um futuro almoço ensopado.
Seguiram cabisbaixos e dilatados. Na parada de sol a pino, acocorado ao tronco duma paineira seca, Peter organizava a divisão de folhas verdes à manada mista, bem defronte à capoeirinha cujo facão de Tom mutilara galhos preciosos.
Reses escanzeladas, de ossos pontiagudos a fincar o couro dos quartos, consumiam competitivamente os suculentos brotos que os dois moleques da vila espalhavam pela relva  enxuta e aloirada. 

16.4.14

Blanche 51: Cabeça de leitoa

Em Riolama, a sineta da capela lecionada por Karly, de súbito ressoa com reboladeiros repiques. É tardinha de sexta-feira, já com a boca da noite desapressada a domar o mundo.
Nick, coadjuvando Blanche na montanha dos caprinos, transfigura-se em atônito sobressalto. Retira do fogo um tição alaranjado e vai chupando devagarinho a palha. A cusparada no terreiro escarra também sinistros pensamentos. Não  desfita a Vila, enlevado pelo rebate afligido: "Blém, blém, morreu alguém / Blém, blém, morreu alguém"...
Um de seus rúpteis enfermos teria cruzado inapelavelmente o trespasse? Qual deles, ou nenhum? Será decesso súbito, qual escanzelada garotinha picada por cobra encastoada, na recolecção de ovos duma moita erma?
A gélida noite já na chegança volteando em luta com o crepúsculo, céu de vidro apinhando-se em brilho e a dupla arremata o almojantar introspectivamente, todavia especulando sequiosa sobre o suposto sucumbido. Tom, habitado por alargada brandura, quiçá assoprará a notícia sobre o funeral, no broto da manhãzinha. 
Sendo Nick quase psicagogo, sai em campeação aos combalidos com Reverendo Albert, outorgando cada enfermidade e apontando possíveis tratos com ervas medicinais, para adoçar um destino rumo ao mistério, unidirecional e irreversível.
E sucedeu-se: o arriar do negrume revela Tom, assim quase jogado, despontando pela trilha tortuosa, deixando evaporar um rastro de poeira. Quando o tropel já se faz sentir, Nick, brigando com seus eus, aligeira-se até a porteira em arquejo inexprimível.
Quem sucumbiu foi Gerrah, uma enigmática anciã sua abroquelada, supostamente com 104 anos. Supõe-se, pois não portava documentos, contudo deu entrada à antiga capela aos possíveis 16 anos, bem mulher e de coração quente, quando casou-se, após fuga, com um frondoso índio desgarrado.
Foi um dos primeiros conjúgios de Riolama, a exatos 88 anos, tendo o avô de Nick por pastor provisório... a família angariou gleba de terras sem franquia de confiança, quando os silvícolas ainda eram consternadamente retirados, encolhidinhos de silêncio. 
O simplezinho e árido torrão, num vazio escandecido, é o mais próximo da cidade de Corda Bamba, enrodilhado na curva fechada do leito carroçável. Desde então, Gerrah vive em presença pura na caverna indígena, de janelas cegas.
O casamento? Não vingou. Na noite de núpcias, de frio cortantezinho, acomodados numa gruta bem acima, onde o pai da noiva fez questão de demarcar território, algo desandou.
Gerrah retorna com expressão de nunca mais, soqueando a noite fechada com seu pouco peso, espalmando a porta da caverna nuns gritinhos assim de dó. Quando a irmã mais velha abre, a pega ensanguentada pelos espinhos da capoeira, apavorada no grosso escurão da noite.
No seguido, acomodada à maciez de sua antiga esteira, passa o restante da noite enganchada à irmã (madrinha), nuns finos fôlegos tiradinhos qual água de poço.
Ao alvorecer, com plácidos ânimos, a Dinda, nos jeitos repletos de brio, lhe indaga em bonança. Na resposta, a determinada nubente farfalha chuviscando voz alastrada:
_Creioendospadre, Madrinha, num é que aquilo se parecia com uma cabeça de leitoa?
Dinda, já casada e vivendo nos comuns, com perspicaz sapiência, sentiu por bem colocarem uma indigerível pedra por sobre o escrupuloso assunto.
O índio escalavrado, após dias amassado em pouco caso, todo ele deixa a caverna e segue com um grupo rumo à reserva. O miolo da manhã deslizava manso a enobrecer-lhe o ânimo.
Com o escorregadio do tempo, o pai viúvo finda-se, deixando de rebotalho na gleba o casal Dinda e Peo, mais as três invulgares solteironas: Gerrah, Cecil e Hit.
Um a um, em desmande do destino aos baques vibrantes, foram fechando a noite dentro de si, e enterrados na volta do jatobazeiro, que sombras, almas  e frutos esparrama intermitantemente no terreiro pedregoso.
A Dinda, tal qual a mãe precocemente finada, foi exímia benzedeira, atributo delegado a Gerrah em ritualística profecia no leito de morte, rindo desusada risadona profunda e grave.
A técnica benzística consistia em pronunciar expressões mesmeiras perante o enfermo, que iam sendo ecoadas a cada machadada, desferida implacável e intercaladamente nos lados do portal de entrada da lapa.
Era especialidade da Dinda imiscuir-se com cobreiros, feridas persistentes e outras afecções de pele. Muito útil numa região colonizada por europeus tão pálidos e de olhos desbotados, debaixo daquele arreganhado sol calcinante.
De pele amulatada, uns beicinhos murchos escorregando boca afora, Gerrah era conhecida "a Nega da porteira"; ali era evocada em necessidade de benzeção, tendo por paga  constrangidas prendinhas roceiras. 
Nenhum cérebro primitivo se atrevia a cruzar uma frestinha da porteira sem permissão, tamanha a parafernalha munificente dependurada por aqueles paus retorcidos, quase a ralhar sinistramente com o chegado.
Nick, lambendo o suor em pontinha de língua, segue ao funeral cortando a montanha rumo a sudeste, por compungidas trilhas de bichos silvestres. Toda o Vilarejo (os patriarcas) se faz presente quando o Reverendo encomenda a alma cansada, iniciando com um "pelo sinal".
Uma ensimesmada exigência, tentando brecar a Terra em sua falta: que tudo lhe fosse branco... a mortalha (angariada de antemão), escassas florzinhas campestres, a túnica bordada de mansinho por ela mesma, anos a fio.

18.3.14

Blanche 50: Escarificação

A tempos, o persistente indiozinho vem amolando a paciência de Tom e Nick, os dois a quem ele se apegou neste mundo novo. Num chamado quase onipresente, solicita agudizante auxílio na execução de sua tatuagem sagrada. 
É hábito intrínseco à tribo, após a grande caçada, os púberes passarem por um comovente ritual de escarificação, onde uma figura, geralmente de animal silvestre, é marcada num local estratégico do corpo.
Ele espera transformar a cicatriz da perna fraturada numa obra de arte corporal, diminuindo assim o estigma de estar manquejando e consequentemente cumprir com a conduta ancestral deste povo continente. Sua paixão pelo intento o faz pronunciar a falazinha indígena em sorriso de lágrimas mordiscadas.
Para tal, necessita alguém com dons invulgarmente artísticos para criar uma deslumbrante e única figura, e um executor de pungente sangue frio, pois a técnica consiste em esculpir a imagem na pele viva, com instrumento cortante.
Através de uma formosa escarificação, atrai-se respeito de companheiros e olhares do sexo oposto. Durante o processo de ablação da pele, a dorzinha crônica e lancinante fará com que desmaie e acorde diversas vezes, e perca grande quantidade de sangue, todavia encontra-se municiado com uma coragem arreganhada.
Após cessar a ciumeira irrivalizável e quase irracional, Nick volta ao discernimento e resolve amaneirar a tão sonhada prática estranha e transbordante em atroz crueza.
Esta cultura ádvena o fascina, afinal! Ele se maravilha, se questiona, se assusta; pergunta-se e não vê respostas límpidas nesta viagem atemporal sobre o universo da aldeia estampado no arguto indiozinho. 
Na embrenhada reserva se vive como nos primórdios, os silvícolas contam com as forças da natureza para a subsistência diária: recolecção, pequenos rebanhos, caça/pesca, permacultura.
A exuberância da vida comunitária: os ritos de passagem e de cura; as celebrações festivas; o animismo e confecção de totens; as noturnas danças circulares típicas em volta duma sacra fogueira. Todo este primitivismo "fotografado" por ele através dos minuciosos relatos do garoto, suscita incredulidade mesclada a assombro.
Não apenas uma vida desarmada de qualquer luxo civilizado, contudo uma vida plena, feliz, digna. A divisão social do alimento, de teto, das dificuldades, retira o espinhoso fardo duma existência insegura e carente em acumulação de bens.
Este espelho da vida civilizatória: a estada na montanha dos caprinos, não fez do menino alguém repartido, titubeante com seus valores. Numa personalidade refrescante, ele almeja seu mundo tradicional em detrimento da existência moderna, considerando a possibilidade da coexistência de ambas culturas.
Nick, meio psicagogo, numa rajada de sentimentos, tem a cabeça girando em dúvidas existenciais e o coração espremido com as atrocidades praticadas contra este povo, considerado bárbaro. A barbárie, na verdade, vem do "homem culto" contra ingênuos seres quase infantes.
A técnica de escarificação é realizada na aldeia com lâmina de pedra polida, todavia Tom fará uso de sua baioneta, que manipula com destreza. Blanche prepara um fermentado de frutos e cereais para alcoolizar o rapaz, amenizando o flagelo.
O desenho é fixado no local da pele com o maçarento urucum. Ao final do primoroso trabalho, uma queloide controlada se formará, criando uma graciosa estampa com aspecto de alto relevo, portanto tridimensional.

12.3.14

Blanche 49: E e Indiozinho?

O indiozinho? Esta presença pura já se esfalfa da tulha e prepara o revir à reserva, no sol ainda vivo do vindouro outono. Além da apoucada sequela: uma perna mais curta, não esboça mais sinais do perrengue aborrascado.
Os fisioterápicos mergulhos restabeleceram-lhe a agilidade; toda manhã ele segue a sós pela veredinha, dialogando com os seus de dentro, reavivando a aventura grupal de outrora. Todo ele em respiração se faz ternura, todo ele se exalta extraviado nos espinhos da distância.
O ar que o penetra sobre o leve pisar em folhas secas perfiladas, vai persignando-lhe a aura e alargando sua luz interna. Enquanto paralelamente desenrola-se um longo fio de formigas, ele se achega e mergulha - ditoso, pleno, fastuoso.
Nem ao longe imagina que após seu primeiro banho, abrolhou em Nick uns sofreres com os detalhamentos de Tom. Sim, enquanto Tom descrevia indiscriminadamente as maravilhas da água, Nick se fez de janela cega e transpôs  o óbvio, enquanto a voz do outro chovia-lhe ácida.
Num desatino alastrado, julgou que Tom pudesse, mesmo que por instantes, ter transcendido a cordialidade e se imiscuído no mundo alheio. O coração, numa roseta desmaiada, quase dá sinais do entronizado zelo de amor desmedido.
Cada frase de Tom, jorrava em ribanceira até a entranha do penhasco em que Nick se ancorava. As baforadas rígidas dos relatos a lamber-lhe os finos fios de cabelos encaracoladinhos, alvoroçados sobre os ombros. Velou a hospitaleira voz do amigo,  respondendo com suspiros em largas remadas e escassos piados miúdos. 
Como odiou o indiozinho... como invejou aquele torso em benevolência ao toque (involuntário) de Tom, com sol dançando à volta! Os braços fechando anel, com dedos entrelaçados em tronco qualquer recendiam amargor que Tom nem pressentiu.
Em alucinação, tremia num corpo atorporado, num formigamento encardido, com a sensação de estar minguando, pronto a explodir seus segredos em devassados esturros sobre o anacoreta Tom. Então, da capela, o sino chicoteou-o com suas pancadas. Aquela cáustica anamnese cor de terracota cessou, afinal. 
Nick, ao faiscar os olhos num escandinavo azul, avivava a negritude nos cabelos de Tom. Calcando meticulosamente os dentes num canto do lábio superior, conclamou-o para a assembleia em Riolama. Num sopro em rebuliço, a portinha esgazeada daquela cena encafuou-se na memória, longinho da alma.
Banhar-se com Tom... banhar-se por Tom... enlaçar-se em Tom. Os cavalos, paralelos, seguiam pelo trâmite num feliz estar. Nick descerrava a mão e flutuava-a na silhueta do sonhado cônjuge, simulando de leve, o ritmo encrespado da água em ondas. Expressividade fugidia, absconsa no silêncio dum amor em novelo virgem e lágrimas cruas.

9.2.14

Blanche 48: Colheitas de verão

Blanche, numa lida quase infinda, antecipa a reposição da despensa, no aromático sótão da cabana. Palestrando com seus eus, preocupa-se com a seca que lentamente aniquila a valedoura vegetação.
As safras sazonais são colhidas conjuntamente a seus parceiros e distribuídas pela arejada tulha e paiol. Apenas a ela cabe angariar preciosinhos vegetais agrestes dispersos por toda a região.
Cereais selvagens e grãos indígenas, basilares para a ração de inverno, estão sendo apanhados no período matinal. As tardes quentes, de silêncio quase sepulcral,  são persecutórias de abundante leseira, com bichos enfurnados em covis. A garota emprega neste período o trabalho doméstico, à sombra.
Sem desacorçoar, quase arremata a perfumosa cocção de compotas dos anuais frutinhos silvestres, adoçados timidamente (devido a seu paladar indígena educado) ao caseiro açúcar mascavo, depurado na colheita de inverno da cana. 
Apoiada num banquinho solteiro, que costuma conduzir atado às nádegas, descaroça, descasca, raspa, pica, rala, numa toadinha sem pressa, até que o pincel da noite vá grafitando seus tachos crepitantes.
A lenta preparação de frutas e legumes desidratados discrepa totalmente de anos anteriores: em limitados dias já estão se esturricando sobre o pano amareladiço num desvão da varanda, exalando sabores.
Na margem baixa do curvilíneo regato, a escassa água, embora mais fraca, mais lenta, mais mansa, mais morna, continua teimosamente a arredondar as agastadas pedras, agora quase à descoberta. 
Após trançar alho e cebola em réstias artísticas, para irem ao sol num processo de cura, produz o coloral com sementinhas de urucum bem secas ao causticante telhado, de modo a avivar a alaranjada coloração. 
Os de casa adaptaram-se aos temperos indígenas acaboclados por ela. A serendipidade da culinária desta jovem advém justamente da mescla de culturas, a referir-lhe autenticidade. 
Noutro instante, cavouca à margem do regato, em busca das primeiras batatas de inhame da estação. As folhas, picadinhas fininhas em fios d'aranha, serão assustadas na banha de porco, temperadas com gostosos brotos de amor-seco.
As primogênitas batatas-doce, já espalhadas em peneiras, são veladas (repousam) no terraço para murcharem e concentrarem o palatável açúcar natural. Amendoins e pipocas recostam-se por ali, assim como as ardidas e odoríficas pimentinhas comari.
A mandioca (pão caipira) é amplamente cultivada lá embaixo, na pradaria, pois colhe-se ao outono para o trabalhoso preparo da farinha, goma e polvilho, que suprirão a família por todo o ano. 
Parte das variadas espécies de batatas, abóboras maduras e feijões já se encontram alocadas na tulha, em vistosos balaios de taquara. O milho para os cavalos e prás galinhas será colhido no outono. Por ora, retira-se espigas verdes pro consumo diário, assado ou cozido.
Sementes de bucha, cabaças, pepinos maduros, melões e melancias (todos primos) estão devidamente separados em miúdas cabacinhas, contendo parte da casca, para reconhecimento futuro. Ficam dependurados num caibro do paiol.
Após a recolecção, as castanhas diversas aguardam secagem e limpeza para serem também armazenadas em trouxinhas de folhas de bananeira. Sua preciosa coleta seguirá pelo início do outono.
Os pequenotes frutinhos da pitangueira e as seriguelas atempadamente maduras, em amizade, dividem o mesmo embornal, após a colheita de ontem ao crepúsculo. Um cheiroso ananás amadurece esquecido num cestinho. Fermentarão em um odre, para tornarem-se bebida alcoólica, à moda indígena.
Uma excruciante moita azulada de agave, agarrada ao penedo, lança polissêmicas hastes equivocadas a atacar o brilharento sol. Uma de suas suculentas folhas também comporá o fermentado, com ramas de assapeixe e frutos do camapu (saquinho de bode).
Num olhar arrelampado, Blanche encontra beldroegas, trapoerabas e carurus de  sombra, embaciados sob uma frondosa figueira, ainda viçosos e fragranciados. Serão armazenados dependurados ao teto, para compor suculentos guisados invernosos, em aromas coadaptados.
Sob um céu de azul extravagante, a lobeira no barranco, de perturbada beleza, persiste heroicamente, com suas amargas pelotas aguardando colheita. Num riso forte, a moça retira os frutos acinzentados, pousando um a um na cabaça presa à cintura. As galinhas (como os lobos) degustarão!
Os frutos da mamacadela, maduros e de-vez, serão afixados ao beiral interno do telhado, numa arquitetura triangular, para durarem o ano. São desmesuradamente medicinais.
Em périplo por toda a montanha que abraça o vale de Riolama, arrecada cá e acola, vitualha opulenta e incontroversa, escolada inteligentemente pela avó.
A uma distância prudente, cruza com um velho índio desgarrado, de aparente antipatia sincera e cansada. Ele vaga serôdio, em continuada busca de ajuste a um local de querência. Há objetivação num olhar que evita ódio e mira Blanche por largos segundos, então segue absorto pela trilha delgada.
Sabe furtar-se de desimportantes ajudas imediatas, que certamente o prejudiquem a longo prazo. Aprendeu nas tareias da vida admoestativa, que pedir e perguntar vicia, numa espécie de manipanso, levando-o a fragmentar-se em gente vil.
Insubmissa, ela pressente que o ancião ri estrondosamente, numa epifania interna, sem expelir qualquer som, aparentando receio de libertar o sol pela janelinha dos lábios. Sem esvaimento do espírito, num talento torturado, some-se na curva, esticando prosa consigo mesmo em fala sibilante.

30.1.14

Blanche 47: A vida madrasta

Em Riolama, a rotina segue enclavinhada no avinagrado verão seco, comprometendo colheitas e pastagens. Presos aos espinhosos preços praticados em Corda Bamba, a população, de olhos turvados ao futuro, além da subsistência, conseguirá anoréxicos proventos.
Quando o inverno surgir, ainda mais seco e espantado, não terão como fazer reparos, adquirir equipamentos, renovar a rouparia doméstica, nada... as providenciais doações à igreja, que são uma espécie de "seguro" à comunidade, começam a ralear vagarosas feito um entardecer.
A crua luz do sol tudo alaga, sem nuvem parda a coá-la, cega o apagado cintilão no olhar dos posseiros, alquebrados em torpor à espera que o aguaceiro empape a campina.
Lucano, o vendeiro, necessitou aditar os preços e as vendas caem. A jovem esposa, em cantinela aladainhada e dolorosa, se desdobra entre a ríspida adultez exigida e a afável adolescência desejada, gerando agastados conflitos conjugais em meio às grossas bagas de suor, pela lida feroz. 
O pai, agora viúvo, jaz melancólico e confuso, com momentos de terror que lhe dilatam as pupilas, nuns olhos escancarados de animal espancado. Estira-se ao comprido num canto escuro, alastrando uma expressão apavorada e beiço repuxado, como se um desgosto o penetrasse a carne.
Da cara tão magérrima despendem duas bochechas miúdas, rugosas e pálidas, disfarçadas pela branca penugem rala. Um náufrago em ruínas com escasso sorriso amargo franzindo-lhe o murcho lábio inferior.
Rob, genitor de Blanche, irriga com esforço descomunal, as persistentes plantações anexas à barranca do rio. Nos passos trilhados à rua da vida, repete esta dança de quando em quando. As pastagens já meio secas fazem os animais se locomoverem demasiado, se adelgaçando visivelmente. 
O rio orgástico, todo veemente, perde parte de vigor e diminui o galope. Seu néctar, num brilho agudo e metálico, é evaporado por um constante vento suado, funcionário do sol. O esturro gritado da cruviana desgarrada espalha o lamento da aferrolhada mágoa desta vila.
Numa propriedade, o celeiro ardeu consternado madrugada adentro, por uma faísca insistente que tentou provocar a carga d'água. A constrangida verba da igreja amparará a família, com um mutirão domingueiro para reconstrução. A vitualha? Esta será cedida às migalhas pelos vizinhos, também desfalcados.
Eric, em grandes olhos pestanudos abarcando a paisagem como quem procura um amparo, quebra-se maçado em vagos pressentimentos... mais uma desabrida seca a romper em voz pastosa, insistente.
Blanche, reticente, já nota a moderação no leite e a marcha amiúde das cabras ao regato, com as elevadas temperaturas. O pedregal, presença marcante na montanha dos caprinos, agora se sobressai com violência na paisagem rala.
A propriedade na planície recebe tempestades de poeira, com redemoinhos em mormaço a varrer galinhas e plantações. Os equinos, força da fazenda, necessitam complemento alimentar, contudo nesta época do ano não há. Os animais velhos ficam por lá, num espaço reduzido, mascando limões e gravetos para dar melhor chance aos jovens garanhões.
O Reverendo Albert, com seu cabelo rente e eriçado, farto bigode tapando-lhe a boca, perde aquele amplo sorriso onde lhe somem as pálpebras nas rugas salientes. Os parcos chuvisqueiros são levados em cordas pelo vento, perpendiculares e frágeis fiozinhos prateados.
Fogem os trabalhos extras, as pessoas somem da vila, a caça se apaga nas imediações... pouco se negocia num mundo suspenso à espera das águas, que respingam cá e acolá, numa fugidia ciranda sem respeito.
Orações domingueiras na igreja, encomendas de ritual da torrente aos indígenas, promessas aos espíritos de antepassados... nada muda a decenal estiagem local a admoestar tudo que vive. 
E o áspero vento brame em respiração custosa, derramado impertinente e fatigado, todas as alvoradas, num gritar que morre aflito, polindo as encostas. Os trovões, longe, anunciam uma esperança tola após o relampejar insólito e aberto a chegar pelas frestas.

20.1.14

Blanche 46: Banho de cachoeira

O mormaço de verão baforeja a montanha dos caprinos. Dia claro e gargalhoso, com a branca lua cheia a espreitar pelo cantinho  do céu. Blanche propõe a Tom que conduza o indiozinho consigo no mergulho à piscina natural, no decurso em que ela alinhava o aromático ensopado de lebre.
Todinho encabulado, porém solícito, ele acode a ideia e ambos dirigem-se à tulha. Ela concede panos, roupa limpa e sabão, num áspero balaio de palha, daqueles que se prende balançadinho à cintura. É hábito este banho caprichado, todo final de sexta-feira, devido à descida da serra ao sábado.
O garoto, aclimatado ao nado cotidianamente, levantou-se arrebatado, com adminículo de Tom e do rijo cajado. Um olharzinho sorridente flechou-os farrista. Externamente, a chaga encontra-se cicatrizada, contudo o padecimento ósseo denuncia que a perna ainda inspira ponderação.
Agarrado ao franzino, porém robusto ombro esquerdo de Tom, segue manquetando morosamente pela picada curta, com fortuna mesclada a apreensão. Blanche lhe emite um bonitinho sinal de ânimo e volta a seus quefazeres, na estreita cabana de troncos.
Instalam-se cautelosamente à oposta borda d'água, sob o primário degrau da cachoeira límpida, com frescos respingos a lhes cutucar. Neste lance inicial, como quem ensaia a se despencar, a poética queda d'água, apesar de alargada, não atinge meros dois metros de altitude.
Diversas rochas deslocadas em volta do poço, permitem transpô-lo aos pulinhos, de lado a outro. A mata ciliar sombreia as margens e confere sensação (falsa) de acolhida: pisar em penedo úmido, recoberto por lodo, é tombo quase certeiro, com possível sisudez.
Seguindo abaixo pelo planalto, a cerca de duzentos metros do  vertiginoso despenhadeiro, com mais três quedas absurdas, o regato espraia-se capilarmente, de abraços com o majestoso pedregal. É ali que Blanche iliba roupas, quarando-as ensaboadas ao sol e batendo-as na fraga, a fim de desencardi-las.
Tom, com a inconveniente timidez queimando-lhe a face, esfrega parte após parte, o tenro corpo nu do adolescente, com sabão e bucha natural. O deslizarzinho da espuma camufla o desconforto que sente ao toque num corpo humano.
O mocinho, habituado a constantes atividades grupais, age com a naturalidade devida, indicando-lhe os locais que requerem maior zelo: as costas e os pés. O restabelecimento do peso devolveu-lhe a maciez juvenil, afinal. Após semanas acamado, seus pés varonis tornaram-se sedosos e graciosos.
Para o enxague, Tom, posicionado com as pernas descerradas ao interior do tanque, todo ele encafifado, pega-o cuidadosamente nos braços e o deposita numa pequena laje submersa. Sem vacilo, o rapazote sai nadando desenvolto naquele bolsão d'água, com cerca de dez metros de diâmetro. 
A cena, espontaneamente estética, tira o fôlego de Tom, não apenas pela lindeza daquele corpo translúcido, contudo também pelo nítido benefício que a água demonstra na reabilitação do alanceado. Faz agora sua própria assepsia, entremeando furtivos olhares atônitos àquele ser transformado em brilho, que esbrangeu a barreira do universo físico: galgou uma dimensão onde é exclusivo, pleno, perfeito. 
Mergulhando e emergindo, o indiozinho avança mais e mais, sofregamente a nadar, num impulso desvairado em reaver-se, reassumir-se. Tom, prostra-se de bruços na laje seca, com o sol a absorver-lhe a água do banho, não ousa quebrar aquela magia, não ousa adentrar a cena. Mantém-se à orla, como quem admira, suspenso no tempo, uma tela famosa.
Afadigada do aguardo, lá da varanda, Blanche desata a gritar, arreliada já. Tom desperta da hipnose e conclama o púbere, que também volta a si. Arrastado à laje com airosidade, se enxuga desajudado, e com ânimo ímpar se escora no amigo para vestir-se e voltar.
Retornam silentes, porém perturbados, cada qual por seus motivos, quando Blanche os avista e admoesta irritada: o almojantar passa do ponto. O primordial ato de Tom, para acalmar-lhe os sobressaltos, é correr cachimbar, perdidão em dúvidas, suas lisérgicas e acalantadas cascas de bergamota.
Após a minguada refeição, devido ao desapetite, egressa-se ligeirinho, afobado, deixando a cargo de Blanche realocar o rapaz à tulha, para o descanso noturno. O menino cantarola, já na trilha, e ela percebe a atmosfera festiva... nada cita, apenas compreende que a ablução passará a ser diária, por fins terapêuticos. 

19.1.14

Blanche 45: O fim da jornada

Com o advento de Tom à Montanha dos Caprinos, o garoto ferido persevera nos relatos, dia após dia, no decurso do “almojantar”. Evasivo e silente, Tom arraiga-se às proximidades da tulha, estimulado pelo intuito de atinar a estoica façanha.
Gesticulando com trejeitos de agonia, e aguardando a tradução por Blanche, ia o menino narrando cada etapa, cada dia da madrasta aventura na brenha de volume impotente no tudo e no nada. O respirar ofegante, o embargamento de voz, denunciavam a veracidade profunda daquele relato:
E então, agora sem a salvaguarda do estrepolento cão a latir com furor, o abnegado grupo acolitou morro acima e enveredou fatigante, por um monótono ribeiro. Portando bordunas, distendeu-se lentamente, devido ao catre do ferido, naquela opulenta natureza selvática.
Abduziram-se da fumaça, dos rastros e ruídos peculiares dos errantes e ameaçadores silvícolas isolados. Eles impõem respeitável fama de canibais e nutrem rancor mortal a qualquer outro grupo, vivendo em constrição, ainda no período neolítico.
Porquanto, não mais se depararam com cabaças quebradas, cestos de palha rustidos, escória de ocas e temíveis tacapes ornados, que os deixavam inquietos e apavorados. A fobia de emboscadas já não lhes espreitava com ardor, estando o som  dos borés cada vez mais distante.
Após enrolarem um morro abrupto, foram completamente embriagados pelo tinido da sineta da capela... era proclamação de óbito no vilarejo. Gritaram e saltitaram assanhadinhos, à borda do abarrancamento com fundas gargantas de rochas a repeli-los.
Foram impulsionados por aquele providencial retumbar, vindo espaçadamente de trás do maciço. O som lhes era íntimo, pois ouviam-no constantemente da reserva. Uma réstia de esperança percorreu seus frágeis corpos surrados naquela tardinha abafada; a caminhada passou a render consideravelmente.
Quando o ribeiro se afinou, transmutando em regato, montaram bivaque debaixo de uma espessa  e encarnada moita, de odor inebriante. Com crassas folhas de inhame, angariaram peixinhos minúsculos e girinos, engolindo vivos, sem piedade ao paladar.
Nuvens colhiam espaço no céu grafite, em meio à noite foram despertos pelo assopro impetuoso do vento, que varria folhas secas, assoviava e rugia na encosta, chacoalhava a vegetação, anunciando iminente temporal.
Alarmados bramidos de feras com hábitos noturnos ecoavam, desencadeava-se a busca por abrigo na flora pródiga, com as estropiadas nuvens indecifrantes a avolumarem-se. Os incomensuráveis  insetos de vargeados lamacentos ecoavam em sinfonia.
Foi o catadísmico aguaceiro da jornada: estreado por amplos granizos, que cingiam a pele e roçavam a densa moita, seguiu-se então a intempérie elétrica, com raios cintilantes e trovões estridentes, atuando numa luta titânica.
Passado o horror, um fino e persistente chuvisqueiro acompanhou-os em suplício gelado até o alvorecer. Com árvores inferiores, desvencilharam-se mais fluentemente e beiradejaram a encosta, sugando suculentos gomos de cana de açúcar.
Foi quando astuciosamente romperam a pastagem: lá estava possivelmente o antigo chão sagrado dos ancestrais. Haviam caminhado cerca de quatro horas, pelos cálculos de Tom. Foi quando apregoaram pelo ajutório de Blanche.

Blanche 44: E comeram o cão

O enfermo hóspede de Blanche continua o relato visceral: neste quase verão, a chuva esteve persistente, ora brava e rápida, ora fina e gelada, incomodando os meninos perdidinhos. Nas tempestades elétricas, onde raios e trovões pareciam digladiarem-se constantemente, o medo sobrepunha-se ao desconforto.
Muitas madrugadas gélidas e encharcadas passadas ao pé de grandes árvores, impossibilitaram o sono dos demais. Ele próprio vivia apenas em sobressaltados cochilos devido à inquietante dor, pela falta de devido repouso.
Abrigos ruins, urdidos com meras folhas de palmeiras, o aperto da fome pela ausência de caça, os intensos e constantes gemidos do líder, deixavam o grupo cada vez mais lúgubre.
A dificuldade em fazer fogo era imensa, na falta da providencial pederneira. Poderiam inclusive, assar bananas verdes, pois há algumas moitonas de bananeiras à beira do regato, de quando em quando. 
Evitando ataques dos algozes mosquitos, carrapatos, formigões e marimbondos, untavam-se em argila bem espessa, para seguir arrastando o ferido. Foram perdendo os adornos, inclusive o sagrado dente de suçuarana que carregam no septo nasal.
Túnicas, tangas, diademas, pulseiras e colares, assim como os brincos de penas, foram extinguindo-se pelas infindas trilhas sinuosas e escorregadias. A exaustão apenas permitia repor as obrigatórias e lindas tornozeleiras, trançadas com emplumação.
Sem veneno para a zarabatana, perdiam pequenos veados, capivaras, pacas, ouriços, macacos, quatis, gambás, peixes e muitas aves. Clavas improvisadas quase não surtiam efeito, devido à imperícia no uso.
Os frutos ainda estavam mal granados, de mal com eles, restando palmitos, cana de açúcar, coquinhos e jatobás, que por vezes, levavam consigo. O mel para o ferido, extinguira-se gradualmente. As cascas e raízes eram amargas e arranhavam a garganta, causando por vezes, dores abdominais.
Um pressentimento inexplicável acelerou a marcha tormentosa, ao primeiro som penetrante da flauta longínqua dos índios isolados. As contingências desalentosas embargavam o esforço ingente pela alegria, apesar da exuberância local.
Macacos de várias espécies faziam travessuras na copa das árvores, mães carregavam bebês às costas, saltando distâncias incríveis, liderados por um velho grisalho, dependurado em cipós. Avistando o quarteto, fugiam em ensurdecedora algazarra.
Pássaros agitados, de todas as nuances de cores, e de tamanhos diversos coalhavam o céu, com cantos dos mais variados timbres e entonações. Seus ovos nos ninhos eram chupados fervorosamente pela equipe esfomeada.
Um furinho com uma pedra, bem de jeito, na ponta do ovo, e a retirada das lasquinhas de cascas... delicado como quem cuida de neném. Então é só sorver, engolindo depressa para afugentar o mal gosto.
Certa manhã, com o grupo já em marcha, um rebuliço invadiu o esplendor selvagem do regato. O cão, em bravura, enfrentou sozinho um grupo de caititus, em sinfonia grotesca, enquanto os garotos se evadiam com a maca.
A brutalidade das cabeçadas, mesmo durando poucos minutos, rendeu-lhe rasgos medonhos. Alcançou seus donos exausto, pingando sangue; a judiação incomodou a ponto de ser sacrificado.
Num rompante, a clava atingiu-lhe providencialmente o crânio já vermelho... último grunhido selou os pormenores da catástrofe, enquanto estrebuchou por míseros segundos.
Amarfanhados e taciturnos, os meninos friccionaram estrategicamente um graveto até obtenção do fogo. Conseguiram um magro e repugnante churrasco fúnebre; em último e providencial auxílio canino, encontravam-se agora esfaimados.

17.1.14

Blanche 43: Detalhes do acidente

Ao arrebol do domingo, um desjejum com mingau para o trio de indiozinhos debutar a jornada à absorta reserva, que se avantaja para oeste. Perlustrarão a miríade e implacável trilha, que deslocou a cunhãzinha Noru e outros silvícolas ali mergulhados violentamente antes dela. 
Ração de carne defumada, rapadura de abóbora, farináceos e frutas passas a decantar a jornadona de tripla diária. Nova pederneira substitui a que rolou pela ribanceira com o guia. Arcos e estoque de flechas foram apetrechados ontem, assim como a zarabatana. 
O fraco garoto comandante albergar-se-á com o escopo de recobra da calamidade. Nick se foi ontem, aflitozinho com possíveis sequelas na quebradura... o risco de gangrena pela fratura exposta foi extinto, pois a febre cedeu. Resta saber se a solda deixará o osso defeituoso.
O ferido, todo ele acabrunhado, se exonera do desprendido trio, que segue bem antes do primeiro raio solar. Animais silvestres mantém a trilha aberta e fresca; bulícios e vultos do grupo se apagam gradualmente no cerne da mata. Foram-se!
O chefe enceta o relato à Blanche sobre o debilitante martírio, quando desvalou-se no penhasco, prostrado ferido na cava do assombroso vale, segregado ao lado dum poético regato correntoso e acachoeirado.
Fora resgatado devido ao importante posto de líder, outro integrante da equipe seria abandonado à míngua. Não se trata de maldade, é propiciatória tática de sobrevivência, pois necessitaram dois dias para o difícil resgate do ermo medonho.
Alterando a vereda, pela impotência em subir uma maca ao despenhadeiro,  extraviaram-se no espesso sertão bruto, se embrenhando na direção oposta à reserva, e próximo aos terríveis silvícolas isolados que vivem em plena idade da pedra.
Naquelas traiçoeiras brenhas do vale, transmudaram a vegetação emaranhada, com magnificente cipoal denso e árvores espessas de altura respeitável. Animais ferozes espreitavam em lacônica advertência.
O cruel sofrimento do cecerone, solavancado na maca, arrebatava seguidos desmaios. Na obscura luta pelo resgate, perdeu-se armas e mantimentos, sobrejando apenas o facão, que custou a ser resgatado.
A fome apertava, conquanto estavam habituados a ingerir insetos e castanhas de palmeiras, afarinhados frutos do jatobá, raízes e cascas de árvores. Riachos não minguavam, e por eles a equipe seguia.
O guia contudo, sobrevivera por semanas com meramente água e mel, sem comer ou dormir (arrancava cochilões), pela dor dilacerante e persistente. Em agoniada sofreguidão, abortando peso e ânimo.
Arrostou e solicitou a morte intermitentemente...
O cãozinho que sempre os acompanhou também emagrecera drasticamente, porém alegria nunca lhe escapava. Perseguia pássaros infantes, com corridinhas e volteio, grunhidos e latidos, tapeando os pobres; caçava pequenos animais e comia abundantes espécies de sapos à beira d'água.
Sem a pederneira para as fogueiras noturnas, que tanto apreciava, aninhava-se entre folhas secas, formando uma simpática bolinha preta, seguindo com as orelhas, a contínua bulha da floresta hostil.
De pequeno porte e agilidade indecisa, com longo rabinho peludo e olhar faiscante, como quem nos enxerga o cérebro. Era o achador de ovos para todos, menos prá si próprio... recusava-se à iguaria impalatável a si.

Blanche 42: Conjugação interfemoral

Neste tenro anoitecer de sexta-feira, enquanto Nick se banha ao regato (para o repouso), ouve ao longe, burburinho ralo de dois integrantes do grupo que ali se hospeda.
Intrigado, agiliza a assepsia e segue-os pela trilha em lusco-fusco. Após torcerem a curva, se aproximam das grandes pedrarias. O filetinho de lua branca começa a se acender com ajuda do vento leste. De súbito, haviam jornadeado quase meia hora pastagem afora.
À distância, Nick averigua em detalhes os gestos e o timbre de voz da dupla, pois não concebe sua língua. Num ímpeto, param encostados ao rochedo e as lhanas carícias de todo o percurso se intensificam abruptamente.
Blanche já lhe havia referido a prática de conjugação interfemoral entre os indiozinhos púberes, assim como o ato de inserir parcialmente a glande no prepúcio do parceiro, em circulares movimentos longos e leves.
Tais condutas, longe de serem promíscuas, levam à lealdade vitalícia entre o duo, em abnegação tão imprescindível numa sociedade tribal primordialmente caçadora e coletora, ainda que sedentária. Remete à alma corajosa e caráter viril, um amor transcendental.
Consubstanciando emoção e razão, já afastado da trilha, o espectador delira ante tão artística cena: a nua pele dourada entrelaçada sincronicamente em corpos esguios e formosos, numa escassa luz de penumbra.
Resguardado por este verniz noturno, deleita-se do momento como se com eles estivesse, sentindo os feromônios de cada gotícula sudorífera, fruindo cada toque e ruído sem a menor parcimônia, fervilhando também em ardor. 
Ao retornar, sempre por detrás do par, delibera com dentre si sobre sua inata condição peculiar, sua infinda paixão platônica pelo assex Tom. Sente-se culpado e assustado ao mesmo tempo em que o deseja carnal e veementemente... é humano afinal.
Na inequívoca sociedade indígena, os impulsos instintivos da expressão psíquica sofrem menos imperativos de valores sociais e não mantém reservatórios de energia sofreada. 
Quando Tom lhe enxergar, jamais poderão expor-se à intolerância ao diferente, presente de forma tão vivaz na aldeota. Todo o seu prestígio, sua força política e espiritual, seriam arranhados a fundo.

16.1.14

Blanche 41: Quatro indiozinhos perdidos

Após semanas marinadas em rotina, na manhã desta quinta-feira chuvosa, ouve-se acabrunhadores gritinhos desusados à margem da floresta que se escorrega, magnificente e desimpedida.
Blanche colhia água fresca ao regato, corre até Nick e ambos averiguam. Surpreendentemente, silhuetas inquietadoras despontam pelo lado norte, estando a reserva indígena a oeste.
Visivelmente abatidos e esfarrapados, estão sem um pedaço sequer de pele de suçuarana a lhes proteger da chuva frigíssima. A uma distância prudente, estacam e estudam, medrosos, a dupla anfitriã.
Um vem de arrasto numa maca rudimentar, puxado intercaladamente pelos outros. Os quatro aborígenes a espreitar, aparentam estar na puberdade, aos quinze anos aproximadamente.
Acostumada de antanho, a receber visitas similares, Blanche se aproxima lentamente, falando baixinho na língua deles, embora sem muito domínio. Destarte, os homenzinhos brutos se exaltam.
Justamente o garoto da maca é o líder, e lhe dirige resposta. Necessitam adminículo urgente, pois estão à beira da inanição, perdidos a várias luas na selva sombria, enquanto caçavam, num rito de passagem.
Nick vai se achegando, toma o controle da maca e todos o seguem rumo à tulha. Ali instalados, enquanto ele cuida do enfermo em meio ao bulício, ela prepara generosa ração com escopo de arribá-los.
É servida uma paçoca de carne assada pilada com diversos farináceos. Frutas silvestres, castanhas e rapadura complementam o prato, que é devorado num chupão, em meio a olhares afoitos e confluentes. 
Blanche retoma a ordenha sozinha, pois conhece o temperamento investigativo de Nick... pelo restante da semana, ele descambará para a tulha. A garota, no entanto, não vê nenhuma exoticidade na soberba ocorrência. É acostumada.
Estirados à palha seca, refestelados e seguros, os três passam a cochilar instantaneamente, após inúmeras noites soltos à intempéries do relento. O quarto menino mira com ferocidade acentuada ao ser tocado na perna quebrada.
Melhor não bulir; o ferimento já vem de longe e a tala parece razoável. Arredio, insubmisso e intratável, o animalzinho acuado morde seu protetor, que não lança um esturro em respeito ao sono dos demais.
Sobreveio a tarde, e Nick preparou um vigoroso chá anti inflamatório, pois o acidentado arde em febre a diversos dias, castigado por indizível sofrimento. Amansado, cede ao esgotamento e dorme em sobressaltos.
Sua debilidade e abatimento devido ao ermo implacável são tamanhos, que ossos lhe saltam assombrosos. Respira com lacônica sofreguidão, ainda preso à calamidade inconveniente.
Nick admira longamente o quarteto, agora entregue à mansidão do sono. Vendo-se estatelado naquela imensa solidão árida e profunda, apenas rasgada pelos gritinhos de Blanche contra os caprinos, remete-se a seu próprio indiozinho: Tom!
Dialoga com o seu outro eu, do alto de seus poderes, sobre o estigma da solidão, que o quartetozinho não amarga conhecer. Numa conversa franca, inventaria seu "relacionamento" com Tom. Perde lágrimas quentes, que em dicotomia, traça uma trilha gélida no rosto e no coração.

15.1.14

Blanche 40: Ariadne viúva e liberta

E as leves asas do tempo voaram desmesuradamente... a desacorçoada Ariadne é acordada de súbito numa noite seca, pouco antes da madrugada. Um desconhecido, a cavalo, esmurra-lhe a janelinha de paus engretados. 
Ela gira a tramela e sonda de meia cara; à luz vazada da lua, se depara com um vozerio masculino, informando em supetão, que lhe trouxera o corpo do esposo. Notícia suspensa, sem dono.
Arranca solavancadamente da mula aquele corpo inerte, amarrado, desgastado. Assim que a porta se abre, deposita-o num canto do cômodo, sobre um pano xadrezinho que Ariadne estende. Sem esticar prosa, o vulto se vai; missão cumprida.
Temerosa, assustada e em parte com alívio, não toca o defunto, nem mesmo se aproxima...faz uma breve oração em cochicho poemado, pois é obrigação derradeira de esposa. Acocora-se ao canto oposto, descalça, com o barrado da saia entre as pernas, velando solitária.
A noite escorrega lisa e lenta, puxando-se as rédeas; um sorvedouro invade a viúva, enquanto a cruviana  sibilante assopra pelas gretas do barraco. Em litígio, madrugada e arrebol disputam, até que irrompe a luz. 
Uma emboscada o desertara em meios-trajes, até mesmo as velhas botas... o desertaram sem vida, e as poucas autoridades de Corda Bamba, em protocolo, apenas cuidariam dos trâmites documentais. 
Ariadne se apressa a contratar um serviço para o enterro, embaixo da mesma macaubeira, lado oposto à avó. Sem lágrimas, sem flores, sem vazio... numa estroina densa, mantém distância inteligente. 
O menino, correndo aos braços da garotinha vizinha, segue absorto, as borboletas sem graça que pousam nas fezes bovinas do terrapleno sem cercas. Era um pai? Nem percebe. 
Para a quinzena, Lucano a visita, costumeiramente, e recebe a notícia em sobressalto: a cunhada não deve durar em desamparo. Agora, definitivamente casado com sua irmãzinha após a orfandade, faz-se homem da família. 
Sem rodeios, Ariadne planeia um futuro lidador, de mulher possantona e liberta: do pai, do reverendo, do esposo e do cunhado em antemão. Já dividiu a viçosa vivenda em quatro compridos lotes, arrematando-se ao rio. 
Havia algo na conta bancária, fará cômodos comerciais. E inclusive manterá um deles à frente do barraco, para sua oficina pessoal. Haverá trabalho infindo com as redes e os bordados.
O bebê na barriga não tarda, aquela dura bolinha desgrudada destoando do corpo magro, que ainda amamenta. Será a remota alusão às cruéis amarras servis. 
Riolama? Pro futuro, assim que amputar a heteronomia e desbastar empreendedoristicamente um aceiro seguro, neste conflagrado mundo masculinizado, angariando pingo a pingo, convicção e credibilidade comercial.

14.1.14

Blanche 39: As coincidentes tragédias

A semana apressurou-se na montanha dos caprinos, todavia Blanche não abandona a psicodélica figurona do eunuco, nem tampouco o estranho desembrulho de Peter para consigo, assim do nada...
Peter, no seu juízo emaranhado, nunca lhe puxara uma prosinha sequer, interceptava seus comentários com ríspidos escudos monossilábicos. Num esvaimento do espírito, ela se perde naquele invulgar ocorrido.
Já conta dezessete anos e nota-se a quase madurez, feito aquela primeira manga de-vez nos jogando um chamego do alto intransponível da mangueira. Completa um quinquênio com esta família. Enquanto cisma, após o “esposo” alçar a morraria, descai suavemente e afaga um dos cães.
Scott é tão absorto em suas atitudes, que chagam a parecer ensaiadas: após a ordenha, dirige-se ao desgalhado ingazeiro à beira do regato, colhe-lhe uma penca de precoces bagas. Sentado num sombreado, estica o beiço e abre meticulosamente cada uma, chupando as nevadas sementinhas, que num canto de boca expele prá longe... e amontoa a cascalhada.
Com grunhidinhos de êxtase, o cão se deixa esparramar à sombra da dona, todo mergulhado na relva fresca do terreiro. A cauda negra, ganha leves tons dourados, por fora da navalhante sombra matinal. 
Por remeter à Eric, é seu animal favorito, e bem sabe! Rola vagarosamente para cá e acolá; e quando finda a blandície, cutuca as leves mãos dela com o úmido focinho, solicitando extensão, idêntico a Eric. 
A cinzenta choça de troncos emoldura-se a oeste, pela grande floresta íngreme; e para além dela, na descida, floresta adida à imensa reserva indígena. Sol de alvorejar ataca a fachada: brilha, doura, cega, aquece.
Mas o que ocasionara a abrupta evasão daquele emblemático sacerdote?  Fuga? Expulsão? Naqueles largos segundos a que se fixou no eunuco, viu-o rindo estrondosamente, e apagou-o depressa, lavou-o de si.  
Na deleitável montanha, quase finda-se o paraíso primaveril: novas folhas e flores, gansos na aguada abaixo, parição de fêmeas... todavia a implacável tempestade de granizo aniquilou galinhas e arrasou plantações por toda a pradaria abaixo. 
A genitora de Lucano, em Riolama, adoeceu bruscamente, e logo veio a falecer pela febre repentina. O mesmo se sucedeu à regateira senhora viúva que a tutelou. A enfermidade não se alastrou devido à quarentena instituída (a tempo) por reverendo Albert. 
O supersticioso vilarejo encontra-se em luto, e apreensivo pelo receio da febre inclemente. Aglomerações estão proibidas por quatro semanas. E para completar as tragédias, o fogo ardeu na cabana da família novata, na estreita fazenda rumo ao rio orgástico. 
Neste domingo, ocorre mutirão de reedificação, pois a parentela habita de improviso, a espremida tulha. Dois outros mutirões remendam as plantações... Os três adversos eventos acirram a crença nos poderes macabros do eunuco, já tão estigmatizado. 
Scott, aos gritos, interpela os devaneios de Blanche; está quase em prantos: um marimbondo caçununguçu lhe ferroou o lábio superior. O inchaço aos poucos deforma seu rosto; ela "voa" ao regato e retorna com argila fresca; ampara "seu neném” com fleuma ternura.

11.1.14

Blanche 38: Um eunuco se faz

Domingo à tarde, revertendo a cavalo da propriedade paterna, Blanche se depara com uma zaragata no terreirão frontal da residência de tábuas.
Instintivamente, contorna-a de manso e capta a essência da altercação. Um afeminado eunuco vagara pela temerária floresta, partindo da imensa reserva indígena, detrás da montanha.
Acha-se todo ornado com abrasadas pinturas sacras, portando adereços adelgaçantes, contudo todo ferido e desgrenhado pelos dias ao léu, sem o pajem que o honrava prontamente.
Eunucos são seres meio bruxos, meio deuses, passíveis de ascensões celestiais e descensões infernais; e apenas prescindem de seu espaço imaculado, em apostasia, fugidos ou banidos.
Furibundo, gesticulando e bradando, tenta intimidar a família à procura do doce sabor de conquista, que atônita, prostra-se diante da intensa entidade fantasmagórica. 
Blanche intercepta tamanho arroubo ainda montada, e imperiosamente comunica-se na língua indígena com o feiticeiro, de imensos e harmônicos cabelos zainos.
Este, assustado, deixa a “máscara" e implora auxílio. Encontra-se em passadiço, então solicita pouso e alimentos, a tarde já fria em breve se fará noite, diz em timbre de gravíssima beleza.
São seres manipuladores do sacro que rogam pragas, e Peter, num rompante, captura a velha égua reformada. Apesar da acastelada estima ao equídeo, esquivar-se-á de riscos.
Ufa! Foi-se a criatura, desajeitadamente montada a pelo, com um embornal de vitualhas preparado por Colen. Ganha a estrada nas jocosas vestes esvoaçantes e apaga-se dentro da poeira.
Tal inconveniência fez com que o guardado Peter, pela primeira vez, arrastasse um discurso desnecessário com Blanche, enquanto sobem a montanha. A curiosidade o impeliu.
Ela aclara que quando eclode um indiozinho especial, que se distingua por um dom ou sinal físico, abre brecha para observação dos pajés, naqueles olhos indecentes que não piscam. 
Em torno dos nove anos, quando os garotos indígenas cruzam uma espécie de adolescência, o "especial" é arredado da família e instado na caverna de um ancião iniciado. Pavor e deslumbramento.
As abrasadas lágrimas da mãe, tingem-lhe o rosto em prata, na estranha éticazinha que mistura emoções. Saboreia um caldo fino de alegria na profunda crueldade desta desominização.
Sua iniciação na seita dos psicopompos durará o ciclozinho de um ano, com todos os ensinamentos e ritos necessários, quando fará estréia da dopagem, hora após hora, para a posterior orquiectomia.
Por quatro luas completas, será fomentado com líquidos vegetais, em caverna escura, e com fungos estupefacientes, chás alucinógenos, incensos lisérgicos e outros opioides (venenos de insetos, sapos).
Com a lua cheia subindo a trote, o séquito de magos, em bafejantes sorrisinhos bravios, se dirige ao local abençoado em meio à floresta, com ungida faca de sílex soberba e autoritária.
Num ligeiro golpe, um sectário sem critério de vida, retira o pênis e saco escrotal da criança, que já se encontram amarrados com finíssimo cipó, para deter a corrente sanguínea.
O próprio brado ensurdecedor desperta o incipiente eunuco do transe, e o devolve desmaiado sobre o rochedo sacrificial, recoberto por emblemáticos petróglifos miudinhos, que se assustam com a cena.
Um canudo de madeira oca é instalado no orifício penial para que a urina flua. Em maca, o garotinho, com o atônito no rosto, retorna à caverna pela madrugada, a comitiva entoando cânticos exotéricos. 
Em constante vigília, curandeiros comutam emplastros, concebem banhados e ministram chás anti inflamatórios, mantendo a dieta frugal, e o estado estupefato do menino, até que recupere as forças e se emaranhe na enantiodromia. 

Blanche 37: Flatulências e passeio

Amanhece um generoso domingo empurrado pela brisa. Ao refulgir o sol, todos terminam o desjejum na casa de tábuas. Blanche, de beleza perigosa, à medida que encarrega-se de Isaac, vela pelos maiores, amestrando-os num jogo indígena de pedrinhas. 
Em cuidadosos trajes de “ver Deus”, e prontos para partir, não podem amarrotar-se. De repente, Bencio contesta lá no cantinho do salão, que Verna soltara uma ventosidade anal abundantemente ruidosa, assim: pororóóó...
A garotinha, desfavorecida, num misto de vergonha e pavor, encolhe-se um bocado, a ponto de ficar miudinha embaixo da bancada. Regurgitando o branco dos olhos, mãozinhas espalmadas no assoalho, mordidelas ao beicinho, aguardando punição. 
Roya se abana, tentando interceptar inutilmente o possante fedor. Blanche, em fisionomia leve, discursa que até mesmo os indiozinhos expelem flatulências... E os convida a uma aventura altamente secreta.
Já no quintal, se dirige ao galinheiro e agarra um ovo choco, dos que não vingam em pintinhos. As donas de casa os utilizam como indês (mostruário) no ninho, a estimular postura de ovos pelas galinhas.
Todos quietinhos, pé ante pé, seguem a tia até o baita lageado de pedras próximo à porteira. A regra do jogo indígena, é permanecer o maior tempo possível bem próximo ao ovo, de fedentina insuportável, após a quebra.
Todos se posicionam a uma distância inteligente, para que o conteúdo fétido e tóxico não espirre em tão nobres vestimentas. Blanche exerce galeios com o ovo em mão, mirando no meinho de um ponto saliente.
Atira masculamente a bomba biológica bem ao cume do rochedo. Instantaneamente se dispersa o cheiro nauseabundo, quase visível, quase palpável. Seus olhos impossíveis gritam!
Cada integrante da equipe deve aproximar-se ao máximo do epicentro catinguento, sem esboçar náuseas. Blanche, com ar de quem se pertence toda, comanda a bagunça sigilosa.
Quem fraqueja, deserta o território demarcado por gravetos. Isaaczinho, nos braços de Blanche, resmunga e se retorce, apoquentado. Ela não se aproxima o quanto apreciaria, em respeito a ele.
Obviamente, Bencio tornou-se triunfante, pois as duas garotas sofreram tanto receio em vomitar nas tenras vestes, que efetuaram prudência demasiada. Ele receptara em medalha, um belo limão cavalo, na sua madurês dourada.
Blanche retirou um fininho cipó por entre os arbustos, fincou no limão, fez um colar e laureou o vencedor, conquanto ele permaneceu bem arcado para frente... aquela ácida fruta a pingar... sua indumentária a resguardar.
A tia, após período suficiente, retirou-lhe a medalha e escondeu-a sob a pedra, para que o sol não a avarie. Será resgatada no revir do vilarejo.
Acocorados à outra borda do pedregal, mãozinhas enlaçando os joelhos, ouviram dela que o jogo é célebre entre seu povo: os deixa fortes, destemidos, empreendedores, rústicos; atributos necessárias à vida tribal. 
As carroças se abeiram e Blanche corre restituir o bebê à Colen, que não irá. Com semblante de santinha perante Sara, acondiciona Bencio e Verna sobre o assoalho forrado por tecido rustido.
Estrategicamente acomoda-se na segunda carroça, juntinho às costas de Eric, abaixo da boléia. Com Roya ao colo, trança-lhe novamente os cabelos enquanto venera o adorado. Tão perto e tão distante...
Esbanjando confiança, contudo sem se fazer de fácil, pensa e diz com propriedade, assuntos másculos, enfatizados com o dedinho indicador eriçado. A voz modulada, baixa e firme, expele as palavras, que se espalham na pastagem.
Os homens da família: Nick, Scott, Tom e Eric, o agregado, fazem gestos de admiração enquanto ela, cheia de si, discorre com propriedade sobre os problemas da vila. Com gargalhadas no olhar, nota, assim de supetão, alguma solução inusitada.
Peter, à frente com Walacy e a família,  alheio ao discurso exaltado, canta hinos religiosos. Scott, acomodado ao chão, em frente à "esposa", alisa a selecionada palha de milho, na pontinha da faca, sobre a coxa robusta. Uma cariciazinha que apenas emprega ao cigarro, bem cuidado, sem pregas.
Nas pontinhas dos dedos, esfarela o fumo picado, perfumento, e vai pitadeando num filete. Umedece levemente a libidinosa língua e beija de sul a norte, a borda da seca palha: cola natural.
O restinho de cuspe que sobra, Scott lança `a distância, admirando a "esposa" Blanche. Vai acendendo com pitadinhas minguadas, e mastiga a fumaça, satisfeito. Golfa espaçado, as bolotinhas perfeitas - um artista no ofício.

10.1.14

Blanche 36: Amores enviesados

Ao final do crepúsculo, Blanche e Nick conquistaram enfim a planície. Num pulinho, ela desce e abre a pesada porteira de paus que separa as arteiras ovelhas da região familiar.
Com o ruído rasgado, todos aparecem à entrada, acotovelando-se. Um aromático ensopado de lebre com inhame aguarda  fumegante sobre a bancada, em esmerada caçarola de terracota. 
Após estimados cumprimentos e olhares audaciosos de Blanche transpassados com Eric, desoprimem-se o carroção e todos adentram seriados, ao comprido salão da casa de tábuas.
Eric, num relance, arrasta Blanche para o terreiro escuro... alegando detalhes sobre a parição da cabras. Ela acaricia ardente, seu rosto cansado e tudo se faz infância: Eriquinho e Blanchinha com uma vida à frente, como bem lhes convier. Ele aperta manga de camisa nos olhos, lágrimas festeiras.
Seguido ao “almojantar”, os treze entes familiares se chacoalham ao som da gaita de Walacy. A meia-luz da lamparina tenta, em vão, trançar cada cantinho do salão e as assombrações, aves silentes, lançam principiozinhos de ingenuidade.
Sara, sempre rígida com as crianças, se afrouxa diante de Blanche, pois esta criou-se desgarrada como indiazinha, e não compreende Isaac “mumificado” em faixas; onde apenas se movem os seus cachinhos de ouro.
Num quase monasticismo, Sara segue sua rígida doutrina calvinista, como  assimilara desde a infância, numa família de fanáticos imigrantes. Às vezes, até nutre curiosidade pelo mundo exterior, todavia sente-se confortável na moralidade resguardada pelas fronteiras da fazenda.
Ela jamais tosquiou-se; tem a cabeça (cabelos e orelhas) sempre recoberta por capuz, põe roupas em cores sóbrias e sem estampas, expondo apenas as mãos. Não canta, não achincalha e nem grita ou assovia. Assim exige igualmente dos medrosos filhos, que vêem na tia, o arco íris da afoiteza.
Focada no risco do pecado e na necessidade do perdão, professa uma teologia policiesca, cheia de ruindade com seus crentes, que sobressalta Blanche pela rigidez.
Um ponto nesta religiosidade exacerbada em que ambas concordam integralmente, é que o batismo vocacional nunca será a tendência desta. Os deuses indígenas são mais convidativos, propiciando um leque de opções.
É tão escuro lá fora, a ponto de se sentir o peso de um paredão. Nuvens se aglomerando, denunciam o iminente final do inverno. Nem lua, nem estrelas, apenas a cruviana madrugadeira chegando de manso, a varrer o terreiro, batendo porteiras e portõezinhos.
Sons estridentes de animais noturnos demarcando território e à procura de parceiros. O balido das ovelhas na pastagem próxima, formando um coral. O chorinho de Isaac, cansado pelo frenesi da noite festiva. 
E numa brecha, Nick arrasta Tom para a cozinha; apalpa-lhe disfarçadamente, como se campeando as cascas lisérgicas. Numa taquicardia, se contenta em respirar, rosto a rosto, seu nefelibato hálito sagrado.
Até quando a naturalidade? Assex até quando? Quando deixa de ser transparente?
De volta ao salão, num propósito, Blanche lhe empurra sorrateiramente sobre Tom. Quando amparado em seus robustos braços, a transcendência se faz em Nick, num êxtase de lisergia maior que as próprias bergamotas no cachimbo do desejado.
Para dormir, Nick adequa idilicamente duas redes emparelhadas (e enamoradas) num cantinho do salão. Proseiam desenvoltos, até quando aquele dorme profundamente, então este se ajoelha e o acaricia: leve, resoluto, por todo ele.
Insone e atormentado, vela longamente o objeto de esbraseante aspiração. O intrínseco amor não angaria exigências para se encetar, apenas escorre magrelinho com a noite quase perfeita.

Blanche 35: O bebê de Ariane

Num piscar, o sábado raiou sequinho e fresco. Tudo foi providenciado para o gostoso declive à fazenda. Blanche enfim apreciará o incógnita bebê Isaac. Um fofo tapetinho malhado foi confeccionado para ele. 
Ela manufaturou um borbulhante tacho de rapadura (sua especialidade), com azedinhas amoras silvestres. Presenteará as crianças Bencio, Verna e Roya, além de reservar um naco à sua família de origem.
O viçoso canavial que cultiva, à nordeste da casinha de troncos, assim como as outras plantações, recebe irrigação do regato que desce sobre a cabana e o anexo (o rancho anterior). Devido ao excesso de pedras, ele parece azulejado em sua extensão próxima à residência.
As águas cristalinas formam um espraiado a oeste, dando início a uma série de cachoeiras, que rompem o despenhadeiro a sudoeste, formando deliciosas piscinas naturais, esculpidas em momentos de tempestades.
A descida nesta tarde está perigosa: demasiada pedra solta, as pesadas rodas da carroça as atiram com violência às patas dos cavalos, que se assustam freneticamente, em meio à nuvem poeirenta.
Estão carregados com os apetitosos queijos ervados e um buliçoso cabrito corpulento para abate. As secas cascas de bergamotas para Tom e as interessantes sementes de especiarias (da horta do cotiguaçu) para Colen, não poderiam estar ausentes.
Na longa e lenta descida, Nick vai revelando `a Blanche o previsto destino da hermética Ariadne, aquela que o amara platonicamente, desde tenra infância. Deu à luz um entesourado menino, e ingere o pão que o diabo amolgou com as nádegas, pelo bronco marido.
Possessor de uma tropa de carga, cinge a região mascateando. Já em meia idade, de feiura caricaturesca, rosto pontiagudo e nariz mole, com minúsculos olhos (que se querem) amedrontadores.
A avó indígena sucumbiu antes da nascença do bebê, gerando flagelo em redobra. O esposo esteve comerciando nos dois episódios, deixando-a entregue à casualidade, que não a favoreceu. Acordada na rede ao lado da ancestral rija, apressurou-se a clamar por amparo.
Uma benzedeira carrancuda e baixa foi quem assegurou a morte, de supetão. Auxiliou Ariadne na inumação, no quintal da residência (em Corda Bamba), sob uma macaubeira. A neta fez a paga com um frango e uma galinha velha. Um canteiro floridinho recobre os restos mortais.
O menino demorou. Foram dois meses de vazia solidão. Inculcada pela avó, seguiu só e calada com as facínoras dores preliminares. Parede-meia, os moradores adjacentes auscutaram a derradeira agonia.
Mãe e filha vizinhas se aligeiraram a acudir. Com a ponta da faca, descerraram a frágil tramela que detinha a porta. Recostada ao canto do cômodo, agarrada ao portal por detrás, Ariadne e o garoto trabalhavam arduamente.
Saltitou em cócoras, porém meramente a cabeça vinha fora. A senhora ordenou que se dependurasse ao caibro do telhado, arrancando suas últimas forças. Foi esticando aquele corpinho, enquanto untava em banha de porco as entranhas da geratriz, arrimada pela filha.
Uma criança perfeita! Com os suaves traços maternos, miudinho e moreno. Os paninhos do enxoval Ariadne fez à mão, bem poucos por sinal. Complementava os cuidados, valendo-se de trapos que acumulou durante toda a gravidez.
Oito cueiros bordadinhos; duas toquinhas com orelheiras; três mantilhas bem quentinhas; uma dúzia e meia de fraldas (em pano próprio); cinco jogos de pagõezinhos e mijões com rendinhas delicadas, quatro pares de botinhas estampadas.
Teceu três redes para mantê-lo aconchegado, tanto em casa quanto no terreiro, enquanto realizava os afazeres. Lindinho vê-lo a balançar, na redinha presa entre dois arbustos, assistindo a mãe lavando roupas à beira do rio, sobre pedras.
O pai descortês, embora satisfeito pelo machinho, espancou Ariadne ainda no resguardo. Motivo frívolo, como sempre. É que a produção de bordados mingou e as encomendas se acumulam.
Todavia, quando o achavascado viaja, ela é momentânea serenidade com seu prêmio amarradinho ao corpo, à moda indígena. Acima de tudo, tece a mais linda e trabalhada rede para a filha da vizinha que a amparou.

9.1.14

Blanche 34: Cotiguaçu

Após o abalo emocional com o passamento de Tibiriçá, a semana fugira. Eric se foi após o acalantamento fragilizado de Blanche. Ela não declinou junto a ele, devido a duas frágeis cabras que aguardam parição, e nesta noite haverá mudança de lua.
Nick, todo aguerrido, surgiu empolgado com a noticiazinha do inusitado cotiguaçu. Ele é todo combalido pela cultura indígena. Blanche logrou o ensejo para acompanhá-lo e esmiuçar a mística vivenda do ancião.
Anteciparam o trabalho e desceram cautelosos, com a merenda: frutas passas e paçoca de carne seca com farináceos; por sobremesa, a amarguinha rapadura de cidra. Passariam várias horas no lesivo despenhadeiro.
Deixou que o  excêntrico Nick explorasse a alegórica ruína das viúvas, aproveitando para coletar especiarias na horta abandonada. Colheu delicadamente ricas sementes e deixou tudo à beira da trilha, para apanhar na volta.
Ofuscado, ele percorreu cada lapa, vistoriou cada desenho nas paredes, cada artefato. Na catacumba das múmias, horrorizou-se com a quantidade de infantes, embrulhados em tecido, agachadinhos como um punhado. 
Blanche, por fim conseguiu arrastá-lo rumo ao índio isolado. Reptando por entre as indóceis pedras, chegaram à pequena curva. Avistaram abaixo, o corpo tão magérrimo, mumificando-se ao sol, esvoaçando longos fios de cabelo cinza, através da brisa.
Depauperado, Nick, o pensador, saudou longamente aquela alma, solicitando a visita. Após a prece, seguiram na veredinha, até o complexo de cavernas talhadas no barranco. Um fascinante mundo se descortinara.
Havia rica cestaria em taquara, com diversos tamanhos, formas e modelos de tranças. Túneis interligavam os antros, com escadaria esculpida na fria terra lisa. Armadilhas e bodoques denunciavam a dieta de caça.
Uma das salas jazia repleta de peles, acusando ser o dormitório. A forma de curtimento do couro era similar à indígena, porém na caverna não havia utansílios em terracota. A arte do cotiguaçu era reproduzida em minúcias.
O inhame assado repousava num cestinho, aguardando paciente pelo possuidor. No terreiro, não existia traços de domesticação animal, nada obstante um roçado erguia-se viçoso em meio ao rego d’água puxado por Tibiriçá.
Blanche, sedenta, correu ao fiapo d'água, e aparando uma folhona de taiova com o líquido prateado, relou seu beicinho e sorveu. Na segunda leva, deixou o excedente para aguar a tosseira de melissa.
Voltando, notou sobre o fogareiro de pedras, apagado, um varal em cipó que acomodava a caça em processo de defumação. Até mesmo as tripas eram aproveitadas pelo ancião: enchidas com ar, dançavam ao toque do vento.
Nada de apetrechos ritualísticos, oferendas, xamanismo... viveu todas essas décadas sem cozer, apenas fazendo fogo e assando à brasa. Uma faca “de branco” era o único ferramental forasteiro na casa do asceta. 
A vista abarcava deslumbrantemente o vale, a leste e a sul. Com o sol decaindo, hora de retornar. Caminhada longa, ziguezagueando penhasco acima, a admirar a secura limpa e dourada desta estação fria. Nick, em êxtase, despediu-se cerimonialmente do (agora amigo) aborígene.

Blanche 33: O corpo seco de Tibiriçá

Na manhã seguinte, Blanche relata a Eric, o plangoriar que sobe a dias, da região onde se encontra a caverna do legendário índio isolado. Tibiriçá, à época da debandada rumo à reserva, alongou-se entre a pedraria.
Obviamente, não é seu nome de batismo. Trata-se de uma alcunha empregada pelos brancos para designá-lo. Ele não trava contato oral com ninguém; apenas ocular, e mesmo assim, a uma distância inteligente. 
Se estivéssemos em tempos modernos, talvez Tibiriçá fosse etiquetado como portador da “Síndrome de Asperger”, ou outro transtorno do espectro autista, pela ausência de interação social, mesmo quando cutucado.
Certamente octogenário, viveu todo esse tempo ermo. É avistado de tempos em tempos, subtraindo víveres nos roçados ou rondando as fazendas, para arrebatar galinhas, ovos ou qualquer outra vitualha que lhe apaziguar o estômago, sempre em deflação.
Blanche havia interpelado Tom durante a semana, contudo o mesmo desconversou camufladamente. Ela instintivamente intui a possibilidade do ancião estar enroscado pela ribanceira; provavelmente já não enxerga a contento.
Desde anteontem o lamento cessou, fato inquietante. Sendo remanescente indígena, Blanche crê ser Tibiriçá taumatúrgico, e não se outorga a omissão ao clamor de um ente quase imaterial. A total contragosto, Eric agiliza a ordenha das cabras e declina com ela rumo ao desfiladeiro.
Na trilha, repentinamente transpõe, estupefato, as ruínas do antigo cotiguaçu, um subsistente local isolado, onde eram enclausuradas as viúvas e crianças órfãs, à época indígena, pois traziam mal presságio, numa época de governantes divinizados.
Este cotiguaçu, pelas dimensões, comportava dezenas de mulheres e crianças. Numa espécie de controle de natalidade, as viúvas nunca mais se casavam. À borda, acima do abismo, há resquícios de roçado, horta, pomar e contenção de animais. 
As cunhãzinhas órfãs, florzinhas campestres ainda em botão delicado, ali perseveravam até lhes serem designados noivos, pelo autocrata Pajé da tribo, `a aguardada puberdade.
Os desgraçados garotos órfãos, aos nove anos, eram retirados para a urticante lida tribal, permanecendo agregados (servos) `as diferenciadas cavernas da elite político-religiosa. 
A monumentalidade da ruína aquilata o olhar. Um avarandado frontal subsiste parcialmente, ornamentado por tabatinga entalhada sobre taipa, aderindo as quatro lapas: lavor feminino meticuloso e estético.
Erigido para manter-se inexpugnável aos entes masculinos, recebeu uma farta muralha em pedras, que resistiu `as intempéries. Sua alma prodigiosa ainda pulsa com vigor, ecoando no escarpado. 
Seguindo a picada fina talhada por animais silvestres, Blanche conserva-se bem à frente (o cotiguaçu é banal para ela), ansia encontrar celeremente pistas do índio eremítico.
Após a curvinha fechada, a leste, avista um grupo de medonhos camirangas. Seu pressentimento indígena concretiza-se: Tibiriçá pereceu. Exora por Eric veementemente!
O escarnecido corpo seco encontra-se dilacerado entre as pedras do despenhadeiro...agora seu sepulcro. Após uma introspectiva prece à longitude, ela e Eric retornam mofinos, arrastando um vazio  tão pesado.

Blanche 32: Sara pari Isaac

Após boatos com o traumático falecimento da meretriz, na pensão, a pradaria se encontra em apreensivo suspense. Sobreveio a sôfrega hora de Sara.
Alexia, sua sogra (com óbito semelhante à cortesã), foi rememorada veementemente pela caseira Colen, a sós com Peter, em total vulnerabilidade.
Após semanas em “contrações de treinamento”, não tão indolores assim, estrearam enfim as secretas e verdadeiras escravas da dilatação, numa gélida tarde de terça-feira. 
Noite de padecidos agachamentos, plangores e caminhadas solitárias ao redor da vigilante cabana, sob uma lua anoréxica, à procura das melhores posições rogadas pelo corpo.
Por companhia, o horripilante trinar proferido pelo pássaro urutau (ave fantasma em linguagem indígena), que chacoalha o fundinho da alma, nos intervalos contracionais, ancorado ao topo do mourão de cerca.
A presença da ave estrambótica, de estética excêntrica, globo ocular colossalmente desproporcional, potencializa o insólito das madrugadas rurais, de negro cheio e oco.
A parturição acocorada, vezo regional herdado das indígenas, com ajoelhamentos intermitentes, transcorreu metodicamente, com um aflito período expulsivo de poucas horas. 
Em força descomunal, grudada à barra de madeira da parede, supervisionando seu próprio parto em detalhes, Sara mordia um nó, plangia, e apostava no sucesso da labuta do filhotinho.
Corpo cândido escalvado, cabelo em coque desgrenhado,  suor hidratando as ruguinhas do rosto, pés descalços com os dedos alavancados no rodapé e rústicos calcanhares suspensos...
Quando ele escorregou num estouro, apoiado pela gravidade e amparado por Colen, ambas se viram apalermadas. 
Ao crepúsculo assomou Isaac, um pequenino garoto transparente, de olhinhos vidrados a fitar a mãe, como se já a conhecesse a muito.
Após o desprendimento, a caseira fez-lhe a assepsia e o enrolou em algodão cru. Fragilizada, Sara clamou ao esposo Peter, e às crianças, que adentrassem o recinto para apreciar o bebê.
Logo após a mamagem do colostro, Colen irrompeu ao salão, apresentando o novo (e choroso) ente familiar ao grupo que aguardara o desfecho em tentativas de orações.
Finda aqui a infância de Bencio. Será o pagem durante e após o puerpério da parturiente. Por quarenta dias cravados, a genitora não se banha, alimenta-se com caldos, permanece ao escuro. Visitas são proibidas, por aduzirem mal agouro.
Os alimentos reimosos são terminantemente proibidos na dieta (quarentena): peixes e afins, carne de caça ou suíno, cítricos, tomate, pepino, ovos, pimenta, pois são considerados tóxicos: causam prurido e dificultam a cicatrização do parto. O inhame deve ser ingerido uma vez ao dia, para purificar o sangue. 
Enfim, com a bonanza, Eric alça-se à montanha. Irradia Blanche com o nascimento do neto de olhinhos que riem, todavia noticia também a morte da rameira. Edith e Judith, identiquinhas, foram adotadas por Helen (supõe-se que não para fins comerciais).

Blanche 31: Morrer de parto

Neste sábado frio e seco, em Riolama, a sineta não clamou fulminantemente... era apenas a insignificância de uma clandestina, então não houve jus à prece. 
Exausta com o arremate da prenhez, ela se mostrava ampla. Implorava auxilio a Emma e Noru. Dormir, somente aos solavancos, a imensa barriga pressionando rins e bexiga – ardor, inchaço, febres. 
Pela ausência de calcinha (à época), o sangue na ampla saia godê alertou-lhe. Chegara a hora! Em breve, as cólicas baixas gritarão. Helen e Holine entram em alerta ainda nesta quinta-feira. 
Emma jaz nas montanhas, à recolecção das abundantes e substanciais macaúbas. Serão extraídas suas amêndoas, que socadas ao almofariz encravado na pedra do quintal, efetuará uma proteica paçoca, com farináceos e as brancas larvas a temperar. 
Blanche, bem à distância, lhe acena o florido avental, gesto que Emma retribui. Noru idealizou-a com perfeição, e assim, sempre na longitude, são amigas “virtuais”: Emma e Blanche. 
Um hóspede javardo e macambúzio, ronda... interessado. E nuns gritinhos assustados, percebe-se as primeiras contrações rasgando com garra a região anal. 
Noru, experiente, executa à moda indígena. Arrebata a garota ao terreiro da pensão e tenta uma frenética dança, ao bater do tambor improvisado, sem aparente periculosidade. 
Intermitentes, as contrações bravias apertam e retraem, estraçalham a ponto de partir-lhe ao meio, em contorcidas dilacerações talhando as ancas. 
Em oraçõezinhas, Emily alonga-se no quarto, pelo desespero. Suas ligações neuronais a transportam a Corda Bamba, nos incontáveis falecimentos por parto do inferninho onde trabalhava. 
O inconveniente forasteiro auxilia a deslocá-la à alcova, após o frustrado trabalho de Noru em prol da dilatação. Em agonia, quase sem ar, solta urros nos segundos de padecimento dilatal, acocoradinha ao pé da cama. 
Uma sensação desumana e grosseira. Berros horrendos, enfim um punho de dilatação. Logo redunda em nefasta escuridão, quase desmaia. 
O lisérgico chá das cascas de bergamota selvagem. Incenso alucinógeno nefelibaticamente espalhado. Consternante impotência, passa o tempo, não passa a atemporal aflição. 
A insuficiência, fragilidade e morosidade das técnicas de parto, o esgotamento físico. Vai-se um dia. Intensas e avassaladoras, as dores quase perdem sua alentosa intermitência. 
Em força descomunal, sempre de cócoras, na explosão fônica, expele uma cabecinha. Os ombros não saem, não ultrapassam, estão enroscados... 
– Piedade! 
Um repúdio dilacerante, vocifera, achincalha, admoesta... se livra. A garotinha é expelida. Angústia estranha... Por que não acaba? 
A incúria das parteiras redunda noutra cabeça. Gêmeas? Ofegantemente, após quase dois dias, num lapso de garra e rugidos, enfiando uma mão nas próprias entranhas, escarra outro bebê. Muito menor. 
A dor foi arremessada longe, com Edith e Judith. Todavia sente algo jorrando, escorrendo... Emily, que covardemente adentrara a pouco, muda de feição. Apressada, retira as bebês do aposento. 
Visão turva, fugindo, Emma aperta-lhe a mão. As parteiras se acotovelam. A cunhã traz e leva panos, água fervente; bebezinhas chorando longe, longe... 
Questiona o constrangedor e flagelado segredo: Cachoeira hemorrágica. Seu útero exausto, dilatado e dilacerado, está aberto e expelindo sangue, feito esponja espremida, sem resiliência. 
Depois de tanto martírio? Dúvidas existenciais, palidez, assombro, impotência. Transcendência...
Fora enterrada, a pedido de Emily, junto ao pé de sabugueiro, ainda em brancas flores, a adolescente prostituída.

Blanche 30: Prostitutas de profissão

Na arruadela chamada Riolama, já temos um novo e aldrabão estabelecimento sendo erigido: “Céu Plantado” (reverendo Albert perderá o fôlego com a tendenciosidade da nomenclatura).
Não é o fato do pabulado inferninho ter pulado, com seus pretenciosismos, para além do sumarento regato chorão, que possa deter uma fugacidade segura.
Helen, em disrupção, segue botando as manguinhas de fora. Espicaçar suas ordinarices irracíveis e incumpridoras da decência, nem com incontinência verbal.
Charlote solicita mansidão ao esposo. O brotar de um vilarejo traz consigo estas facetas escuras e  a certo ponto, até necessárias. Homens vadios, em suas esferas incongruentes, são sempre inconvenientes e requerem atendimento sexual especializado, amenizando riscos de estupro.
Reverendo Albert, então abranda discussões ocasionais relacionados ao surubal em edificação, haja visto que localiza-se fora do povoado, cercado por muramento e distante dos bons costumes.
A taxa de concessão para funcionamento do pardieiro será fiscalizada pelos "homens bons" da localidade, provavelmente em forma de dízimo à igreja local, como qualquer outro empreendimento.
Os impostos dizimais são arrecadados anualmente pelo conselho de anciãos, e todo chefe familiar contribui. A forma de aplicação da verba em prol do bem comum, é decidida em assembléia.  
Noru, a cunhã, e mais duas mocinhas arrebanhadas em Corda Bamba (uma negra e outra grávida), rindo ou chorando, aperaltar-se-ão no plantel inicial do prostíbulo em construção. 
As três já habitam desgastadamente a hospedaria, e estão sendo devidamente adestradas aos fingimentos e subserviências, vaticinando o trabalho madrastal.
Noru, mascando desconchavadamente uma fruta, recostada ao portal, observa, em claustrofóbica confusão mental, as duas colegas confabularem.
Total inconveniência, Emma (ainda) donzela, de olhos perdidos, suspiro afogueado e fino, em luxúria pulsante, dar oitiva às sacanagens de homens de uso (“Zés Gostosos”), citadas pela incoercível rapariga amojada.
Noru bem atina o dispêndio da servidão a homens... causa-lhe ojeriza, as recordações das crueldades sexuais aplicados por seu feitor indígena. Caso houvesse opção, doravante tornaria-se assex.
Não contraria a opinião destoante da (embora adolescente) "mulher pública", plantada na ainda inócua cabecinha de Emma... saber saborear o estranho ofício de cortesã é privilégio para escassas profissionais.
Ao inaugurar o inferninho, provavelmente já terá eclodido a cria da meretriz habilitada, e será entregue em adoção a qualquer família, em total pragmatismo.
A bela e negra garota Emma é púbere imperita. Embora não saiba da repugnância que o ofício possa apresentar, indubitavelmente não conduzirá o grupo de quengas, quando da ausência de Helen.
Será decepcionante, caso algum dia Blanche trave conhecimento, aturar o inamigável destino da (não bonita) cunhã, a quem acudiu na montanha. Após tanta borrasca, lograria-lhe  sina mais branda que esta tareia.
Blanche, nefelibaticamente colhe uma flor, a pensar na áspera e mirrada cunhã. Bem gostaria de angariar companhia feminina, naquele isolamento montanhês. Alguém para confidenciar, repartir afazeres, talhar uma trança ao cabelo, enfeitada por aquela efêmera flor...