27.12.13

Blanche 23: Rotina e alimentação

Também para as prestimosas damas com seus olhos cuidadosos no importante auxílio infantil, a rotina semanal é bem demarcada na comunidade Riolama, após a introspecção e encalacrado repouso dominical. 
Às segundas e quintas-feiras, com a madrugada empurrando o dia, lavora-se com toda a roupagem: Lavar, ferver, passar, engomar, coser, cerzir, remendar, tingir, fiar, tecer. Os coloridos varais balançando-se ao vento, gritam a paisagem.
Às terças e sextas-feiras, a incumbência é com a vivenda: faxinar, repor o (indispensável) estoque de lenha, fazer reparos, confeccionar cestaria, utensílios em terracota, ornatos, manter a horta, jardim e pomar. As crianças tagarelas seguem enfileiradas morro abaixo, cada qual com seu despenteado feixinho de lenhas à cabeça.
As quartas-feiras são reservadas para deliciosos trabalhos ocasionais: pescar e salgar, abater animais e ocupar-se da carne: defumar, preparar embutidos, acondicionar em recipientes de terracota, selados com gordura, fritar torresmos. O aroma viaja denunciante.
Também às quartas, manufaturar sabão e açúcar mascavo, preparar compotas com frutas de época (silvestres ou cultivadas), deixar as passas secando ao sol, montar réstias de legumes e especiarias, desidratar ervas e temperos, preparar picles para o inverno. A criançada afasta as galinhas. 
Os sábados são reservados aos banhos dos entes familiares, o que requer armazenamento extra de água, aquecimento, colheita de flores para aromatização da água (pois o sabão de cinzas é fétido), vestimentas limpas para vestes e para as camas, toalhas rústicas, revezamentos no barril do banho. Um fuá.
Nesta comunidade distante, não se faz quitutes ou pão, pois a farinha de trigo, com seu manancial de lucratividade, ainda não é encontrada. Nem mesmo se planta o arroz para encher a terra de satisfação.
A auto suficiência faz com que adquiram o sal e façam escambos entre si. Guloseimas industrializadas são raramente presenteadas às crianças, e quando ocorrem, chegam trazendo sorrizinhos. 
Utiliza-se os carboidratos da mandioca, do cará (a variedade cará-moela é silvestre), batatas diversas e outros tubérculos, abóboras variadas, inhame, milho, e frutas “carnudas”, como banana da terra e abacate, fartos feito moça cortejada.
As farinhas de alguns desses produtos, são preparadas artesanalmente, para utilização criativa na culinária local: fubá, farinha de mandioca, de cará, amido. Enquanto as mães trabalham, filhos montam em seus movimentos.
O mingau, com o casamento das várias farinhas, às vezes enriquecido com legumes ou passas, é prato trivial, sempre equilibrado no doce ou no sal, servido na refeição matinal ou no lanche de sol a pino. Vem fumaceando no seu quentinho aromático.
Com a aproximação do inverno e constantes geadas (ou até neve de quando em quando), as hortas são desfeitas e legumes armazenados no sótão, para se desidratarem e aturarem o tempo frio. A fragrância leva a um respirar prensado pelo encanto.
Blanche detém receitas repassadas pela avó indígena, utilizando folhas, raízes, frutos e tubérculos coletados nas encostas e pouco conhecidos pela população branca. A sopa vai se acaldando no todo de seu capricho.
Os indígenas somente faziam duas refeições diárias: ao amanhecer e ao anoitecer, porém com a chegada de novas culturas, caminharam nos furtivos que julgavam passageiros e um leve lanche foi adicionado à dieta, bem ao sol a pino.
Nos anos de grande seca, ou de inverno rigoroso, volta-se à aflissurada dieta de duas refeições, inclusive para a população não índia. E nestas acuações crescem um pouco mais dentro de si mesmos.

Blanche 22: A contagem do tempo, que escorre

Não há feriados em Riolama, senão o santo dia de reza. Mais que um direito, o ócio domingueiro matutino, se faz ônus religioso, para orar e catequizar compulsoriamente, mesmo que em convenção domiciliar. 
Então os entes masculinos, sendo procuradores de família, devem apresentar-se prontamente à capela, assim que anunciado o recrutamento pelo aferrenhado badalo de Karly, ao dilúculo. 
Numa rotina desconstruída, tentar ignorar o clamor às orações, ou realizar utilitaridades à aurora domingueira, é falta grave, censurada com carrancas espinescentes pelos silentes convíveres eclesiásticos. 
Aos desfavorecidos infantes não se permite brincar, sorrir, correr. Não se penteia o cabelo, nem dialoga-se displicentemente, apenas as atividades inevitáveis são executadas metodicamente na “Manhã do Senhor”. Sol em zênite, cessam enfim as rigorosas restrições. 
O badalar do sino alicerça teimosamente a alvorada do domingo, ao passo que o tinido dos tambores na bosquímana reserva indígena, percutem a transcendente mudança lunar, após o crepúsculo. 
Não se orça as horas com o sinete da capela, irrelevantes neste ermo recanto. Tem-se comumente sol e lua para marcação temporal. E num sincretismo, tem-se o auspício do deus branco correlato aos casmurros deuses indígenas. 
Blanche aprendeu a registrar as semanas, acompanhando os quartos de lua. Cordões confeccionados de forma especial, presos a um toco de galho, alferem nozinhos a cada dia que chega, e outros maiores para mudança lunar. Um nó peculiar é adicionado à chegada da cultuada lua cheia. 
Neste calendário lunar, Blanche computa os vinte e um dias em que suas introspectivas galinhas chocam os ovos, as vinte e uma semanas da gestação das cabras, e o tempo variável de germinação das sementes.
O tempo cíclico, em Riolama, onde as estações demarcam época de colheitas ou privações, prescinde o tempo linear, que escoa pouco perceptível e regula o tempo subjetivo, onde o inverno austero aparenta um tempo infinitamente maior que o verão abundante.
Noutro calendário (secreto), Blanche tece com nozinhos a presença de Eric e seu possível retorno. Em momentos de melancolia, recorre a ele como ponto de comovente esperança, apaziguando o labaredado arrebatamento íntimo.
Seus poucos eus dialogam absortos antevendo as emoções, como uma levíssima cortina esvoejante a gotejar perfume silvestre. Feito uma tela desertando a moldura, voam até Eric possuidor.

Blanche 21: A complexidade do sino

No lado oposto da estrada, em Riolama, de costas à falda íngreme, a caiada capela do vilarejo abre-se em ternurinhas, ocupando parte do terreno ondulante, com arvorezinhas sombreadeiras.
As grandes portas, à frente e aos fundos, trazem refrescante corrente dum arzinho filtrado. O anexo feminino à direita, menor e mais baixo, possui diversas janelas em toda a lateral, onde as catitas garotas se debruçam aguardando o início da celebração.
O campanário, sobrelevado ao casario, numa pintura azul acinzentado, copiando portas e janelas, comporta o sintetizado sino, num bronzeado reluzente, enquanto mira todo o trecho do rio cioso, tentando ninar as mágoas do vale.
O dobrar do sino envia deliberadamente advertências obtusas a toda a plaga. Num ato persecutório, reporta melancólico, ocorrências maniqueístas, num hino agregador. 
São lamentosos repiques para devastadores incêndios, terríveis assassinatos,  poderosas enchentes,  corriqueiros falecimentos naturais, acidentes assustadores e outras tormentas.
E bimbalhando festivo, também reporta singelos nascimentos, festas, celebrações religiosas, reuniões políticas que requeiram a assiduidade dos “homens bons do lugar” para auxílio ou tomada de decisões. 
Seu tintinabular melódico ou lastimoso, vai se modificando minuciosamente conforme o flagelo, em colisões espaçadas, num código em lassidão, para cada categoria catastrófica ou solene. 
Destarte, o vibrante grito do sino entrecruza cada encosta, estremecendo os ouvidos e fremindo corações, golpeado pelo  minucioso sacristão Karly, em movimentos oscilatórios. 
Ao alvorecer de domingo, seu pendulear é absorto e ranzinza, em chamativa ao rebanho, anunciando que se faz um letárgico dia sacro ou “dia dos pecados”. 
O badalo somente alinda propedeuticamente as tardes de sábado, quando há esporádicos matrimônios. Alia-se aos perfumosos arranjos de flores silvestres e os coloridos laços de fitas conferindo às noivas uma aura peculiar.
Ressoa num plêiade de alegrias e brincadeiras, conquanto por vezes, mimético em açucenas e narcisos, traz tristezas enviesadas de um enlace forçosamente arranjado. 
Blanche, alongada na montanha dos caprinos, sente seu reverberante percurtir em serpentina, na esparsa longuidão da reentrância. É um intenso quebrar de rotinas e eminente despertar de sensações.
Neste instante, está em pendularidade pela lúgubre noiva Ariadne. Seu coração (de Blanche) se estilhaça em melancolia ternurenta no isolamento da montanha, em estima à dileta amiga. 
Nick cantará louvores na cerimônia. Blanche não estará presente, contudo teceu coesivamente um tapete oval, como presente ao enlace.
Abundante em fruição, apascenta a alma da amiga em ruidosas orações indígenas. O choro se abre doído por Ariadne, com pelotinhas de lágrimas tentando forçar festa ao saltitarem rosto abaixo.

26.12.13

Blanche 20: Estrebaria, Willy e os seus

Em Riolama, a derradeira instituição comercial a acariciar o desabalado rio, afronteirada pela descida saltitante do regato chorão, é a extensa e fina faixa da vivenda da estrebaria, com permuta de grandes animais (equinos, bovinos, muares, bubalinos), reabilitação, selaria, construção e reparação de carroças. 
O inóspito (e de beleza excêntrica) proprietário Willy, pintalgado com a pele amulatada, é esposo da cabisbaixa e rogativa Corinne, e genitor de Ariadne, Dory e da caçula Críscia.
Willy, hierárquico, governa a família com punhos de aço, já tendo sido advertido inclusive pelo reverendo Albert. A prole trabalha incessantemente a seu comando, e unicamente à insípida Corinne sobeja todo o expediente doméstico.
Homenzarrão, fala rouca e imponente. Seus olhos de jaboticaba cravam forte no interlocutor. Uma compleição física admirável, até mesmo entre companheiros. Disfarça um secreto medo (pavoroso) de abelhas.
Seus carroções, perfeitíssimos, são comercializados por toda a província; o aguardo por um exemplar estende-se por quadrimestres. Willy proíbe a qualquer ente ou camarada, assentar-se durante o expediente, inclusive à esposa, que traz feito a uma escrava.
A etapa de colocação do anel metálico (aro) nas rodas dos carroções, é um espetáculo à parte: vão se arrimando e a madeira se incendeia, enquanto dois homens açoitam com a marreta, um outro abduz com uma pinça. Uma cabaça d‘água chuviscadinha por Críscia ajusta finalmente a peça.
Dory é disponibilizado exclusivamente para um dia de aulas com Charlote, e as cachopas, com Ingrid. Saber coser amplia o dote, nesta região com inúmeros homens desgarrados e escassas (e valiosas) damas!
Apesar de esplendoroso, Dory herdou de Corinne a baixa estatura, o que o impulsiona a estar sempre montado aos domingos, e a refrear passeios a pé. Herdou também os longos cabelos negros, sempre esteticamente trançados e reclusos num tênue filete de couro. 
A proximidade do enlace de Ariadne aduz apreensão ao grupo familiar; a avó índia (materna), prostrada desde que fraturou o fêmur em ablução de roupas ao arteiro regato chorão, almeja avançar com ela. 
A árdua negociação com o futuro esposo será advogada por Dory, à ocasião oportuna. O coraçãozinho da noiva flutua, em atinar a possibilidade de arrebanhar consigo a frágil e reverenciada anciã.
Mesmo acamada, ela confecciona com junco e outras fibras, cestaria indígena delicada, concebendo subsistência com a vendagem, executada pelo ardiloso Lucano em “Corda-Bamba”. Tal fato privilegia a barganha em prol de sua comuta.
Críscia não se encontra preparada para o matrimônio com seu nubente Lucano: secretamente, angaria pedrinhas, cacos de “louça” em terracota, grandes sementes, e nos parcos momentos livres, “trabalha” simbolicamente, cuidando do fictício rebanho de ovinos a que tanto ama.
Blanche sabe que vasqueiramente irá rever Ariadne, e padece ao pensar na ocorrência. Pela infância, suas mãozinhas dadas seguiam por toda a celebração feminina dominical. Blanche dispunha nela um ancoradouro confiável, seu exclusivo “quase ente familiar” naquele "imenso" santuário.

Blanche 19: A família empreendedora

Os intensos viventes da comunidade “Riolama” constituem um misto de seres incontestavelmente obstinados e seviciados, vencendo percalços na interseção entre o rural e o urbano, o rudimentar e a vanguarda que ronda este final de século.
A terceira herdade do vilarejo, divisada pelo “rio em priaprismo”, e apartada às outras, é dos vendeiros Adso e da mestiça indígena Núbia, com seu jactâncio e harmônico descendente Lucano.
Ali também opera a incipiente e pouco usufruída estação dos correios. Num desassossego, a família realiza escambo, adquirindo peles, pequenos animais, ovos, queijos, grãos, artesanato, e aduzindo bens manufaturados de Corda Bamba.
Celeremente, fazem para lá, o transporte de passageiros, em ritmo quinzenal, num carroção fechado (um luxo). Rob, genitor de Blanche, já usufruiu deste meio de locomoção diversos pares de vezes.
Núbia, dama empreendedora e sagaz, mesmo analfabeta, guia a família. Adso e Lucano acolhem seus pertinentes comandos; assim evoluíram de uma itinerante carroça de escambo à próspera propriedade urbana.
No anexo da mercearia, a residência é ampla e arejada; a chácara produz vitualha sortida, para o consumo e para venda, graças às lodosas enchentes do “rio precioso” e à dedicação do senhor Karly, um negro empregado prestimoso, de meia idade, que habita o porão.
Lucano cavalga e doma animais como tanajura em asas, inclusive detém os melhores espécimes equinos da região. Seu porte avantajado e beleza ímpar fazem dele um ser idílico, reputado dentre os demais rapazes.
As garotas não ousam apreciá-lo em seu olhar de esmeraldas, nem mesmo sua Críscia. Tal enlevo é terminantemente ilícito a qualquer ente feminino. A provável transcendência das jovenzinhas induz candura angelical.
Quando a galope ele irrompe da montanha, com o cesto de taquara repleto de colheitas exóticas, deixa um rastro de fragrâncias, que sendo açoitadas pela brisa, se espalham por cada fresta.
Adso é idoso e obeso, muito loiro e cosmopolita: já viveu em quatro países, em dois continentes distintos, repousando agora nestes confins a vinte anos, desde que se enamorou da esposa Núbia, uma geração mais jovem.
O sogro, também branco, a vendeu a prestações. Ela trouxe consigo a túnica que vestia e adornos corporais. Bichinho aprisionado, foi se abrindo à medida que a confiança aumentava. Expandiu-se celeremente, feito fermento ao calor.
Blanche comercializa aqui seus psicodélicos tapetes, onde emprega pura lã de ovinos da estância. A combinação dos nozinhos complexos repassada pela avó indígena torna o trabalho fabuloso.
Na montanha, apenas há caprinos, e mesmo não sendo endêmicos, estão amplamente adaptados a se dependurar absortos pelas encostas e escarpas montanhosas, feito floquinhos encardidos.

Blanche 18: Helen e Holine na hospedaria

Avizinhada a Occan, fica a nababesca hospedaria da esguia Helen, fêmea rija que também é parteira e curandeira (das frações íntimas) feminina, respaldada por sua devota e reservada funcionária Emily, com trejeitos másculos.
O prédio cinzento, em madeira rústica, contempla um longo corredor com seus quartos em tentáculos. Ao final, o quarto de banho à esquerda e rouparia à direita. A grande sala de jantar engole o corredor, logo antes da esfumaçada cozinha.
Tudo se lava à refrescante margem do gozoso rio, repleta de pedras na cor do escurecer, após percorrer um longo terreno em declive, com horta, vasto pomar e galinheiro, na sequência em que se escreve. 
O resfolegante Occan reside ali, assim como a sexagenária senhora Holine, roliça e plácida viúva, benzedeira que lhe quitou a estada vitaliciamente, com o desmesurado terreno da pensão. Moradores de “Corda-Bamba”, vindo comercializar ou espairecer, hospedam-se aqui. 
Muitas mães estabelecem procissão, diligenciando pela requisitada Holine: além de benzer; ela “costura” mal jeito;  afasta quebranto; alivia dores; expulsa lombrigas; subtrai febres de bebês; corta medo (para crianças que custam a andar) com a “mão de pilão”; efetua simpatias e orações. 
Detém poderosas fórmulas de chás, banhos, pomadas, emplastros, patuás, incensos, cabaçadas (os ingredientes ficam em uma cabaça, curtindo por três luas).
Opera com aromáticos fármacos cultivados ao terreiro, e tudo que coleta pelas ricas encostas montanhosas, para pintalgar a vida alheia. Seu sogro e esposo medicavam em “Corda-Bamba”. 
Helen, em discernimento, providenciou o preâmbulo de um acesso no primeiro aposento à direita, para propiciar as consultas da imprescindível Holine diretamente ao logradouro. São totalmente gratuitas neste (único) consultório improvisado de curandeiria holística. 
A hospedeira Helen, muito clara e com cinzentos olhos agateados, foi prostituta em “Corda-Bamba” desde a puberdade, onde sobreveio coercitivamente após o pai lhe mercar. Nesta áspera vivência, adquiriu vasta experiência na terapêutica às senhoras. 
Poupou seu numerário e hoje subsiste remansada junto à amiga Emily, que retraiu ao inferninho e tem por concubina (secretamente). Alguns homens libertinos, segredam seu pretérito, e nada pronunciam por induzir comprometimento. 
Blanche, que não compreende o latim desta missa, julga aprazível sua vila: exuberante, repleta de odores e contemporaneidade, cromática. Ficciona conhecer os meandros da pousada, acoger-se por uma noite, receptando tudo à mão, sendo mimada; conquanto, após minguadas horas de estada, o incômodo já lhe irrompe. 
A vila aponta ruídos, movimentação, vaidades, apelo comercial, o trabalho metódico e extenuante de suas queridas amigas, sem mínimos respiros de contemplação: a trabalhar e trabalhar. Então a ânsia por voltar ao lar na montanha dos caprinos passa a beliscar-lhe.
A solidão deliciosa, de quem não recebe ordens, a convida. Seu mundo amarfanhado como um travesseiro dileto roçando-lhe o corpo. Hora de desertar temporariamente a baralhada civilização, tendoapenas os sons de animais a lhe esmurrar os ouvidos.

Blanche 17: Occan faz botinas prá Blanche

Em Riolama, a existência segue seu lento ritmo. As famílias rurais são a razão desta vila (região com cerca de 300 habitantes); conquanto somente aos domingos há impulso comercial, com transeuntes bem vestidos, propagando-se para a frente e para trás. 
Pela semana, um ou outro lavrador fragmenta a praxe dos prestadores de serviços essenciais. Forasteiros são parcos (e por vezes lesivos), quando vêm, atraem metediços olhares de meia-cara. 
Um dos quatro estabelecimentos comerciais tendo às entranhas o "imperioso rio", é o tosco galpão cheio de anexos do ferreiro Occan, também sapateiro e enfermeiro masculino (tira-dentes). 
Ele manufatura botinas "unissex" para todas as idades, restaurando-as constantemente. As ferragens das carroças, ferraduras e ferramentas diversas são forjadas e entalhadas por sua laboriosa equipe. 
Occan vem de longínquas terras gélidas, fugido da guerra, e apesar da deficiência física, sua saúde é tão férrea quanto a profissão. É proprietário de uma sapiência que surpreende; homem letrado, chegou assim ao sertão.
Comedido, metódico, exprime poucas palavras e vai pingando-as sonoramente, cochichando um prosear cantado. Seus olhos, tingidos num azul de myosótis, são de uma profundidade elegante.
Na jornada epopeica, foi privando-se de pertences estimados: o retrato dos irmãos, o cavalinho entalhado em madeira dos tempos de infante, documentos, um espelho presenteado pela genitora, o canivete que pertenceu ao avô paterno. 
Ele próprio está inteiro, então é o que basta, pois nestas lonjuras muitos perdem a visão, partes do corpo, o juízo. A jornada de trabalho aqui denomina-se “luz `a luz”: inicia-se com a primeira fagulha de arrebol e finda ao crepúsculo, ocasião da única refeição quente e completa.
Occan é assex feito Tom, talvez por natureza, ou compelido pelas barreiras de expatriado, porventura pela timidez, quiçá pela deficiência numa das pernas. Fato que só tem a seus eus interiores, e sendo muitos, lhe bastam.
Blanche encomendou via David (o irmão que lavora ali), outro par de robustas botinas, pois crescera, e aquele seu, já lhe espreme os dedos com a violência desembestada de um vendaval.
Todas dispõem metodicamente o mesmo modelo, na cor preta, tanto masculinas, quanto femininas. Fora da vila, não se traja calçado, com exceção dos dias em que neva, a cada cinco ou dez anos. 
A garota, toda ansiosa, aguarda sua confecção realizada em minúcias, ponto por ponto, enquanto remedia a bota idosa, lustrando-a com carvão embebido em gordura animal. Será doada aos irmãos.
Fará a paga, comercializando seus magníficos tapetes indígenas, tecidos em lã, que Lucano (o vendeiro) arrebata à cidade grande - Corda Bamba.

Blanche 16: As cascas lisérgicas

Erin e Lisa aguardavam Blanche, todavia não com certeza. Transbordantes, foram tocadas quase que de surpresa. Soltando ruídos indígenas característicos com auxílio das bochechas, revelam sua alegre exaltação.
Todos se encaixam em cerzidas roupas confortáveis e a garota, na túnica indígena em pano cru, vai se imiscuindo entre os seus. Nada pode conscurpar esta tarde de querência. 
Neste mundinho suspenso, estão fortes e livres como a suçuarana. Estouram pipocas; servem num odre de terracota, o fumegante chá de cascas de arbustos, adoçado ao mel.
As frutas de época complementam o prato, servido no terreiro, embaixo da dançarina moita de bambus. Esta refeição do meio dia aqui na circunscrição é mero paliativo, sempre um lanche rápido e leve. 
Logrando o calor remanescente, fogem da triarquia, enfileirados para a margem do "briguento rio", ela e as crianças. Naquela curva fechada, forma-se uma praiazinha, não de areia, mas de arteiros pedriscos bem lisos.
As cerejeiras silvestres, ainda em escassos frutos tardios, assombram e refrescam o local. Os garotos, habituados, mergulham sorrateiros ao cantinho oposto à correnteza. 
Acte e Blanche, sem roupas, deitadas à margem, recobrem-se com as úmidas e geladas pedrinhas, aproveitando um cristalino e macio veio d`água que por ali desponta, beijando constantemente o másculo rio.
Acima, ao céu, montinhos de nuvens desfiadas brincam ciranda, enquanto as amadurecidas cerejas se despencam sobre ambas, ao sopro da malandrinha brisa leste. 
Num mísero segundo, o sol se abaixa, denunciando a hora de Blanche retornar num voo à estância. A despedida não dispensa um sortido jacá de taquara, repleto com víveres; as recomendações da avó e o lamúrio geral.
Encaixando o jacá, ela galopa graciosamente “em pelo”, chicoteando com os pezinhos nus as grossas ancas do cavalo paterno, que será devolvido por Walacy oportunamente. 
Com o carroção a postos na estância, todos aguardam alvoroçados, a vinda da menina à entrada da casa de tábuas. Tom, esquivo e silencioso, subirá com ela para uma semana enfadonha e laboriosa.
Novas despedidas, o olhar animoso abraçando Eric, e ela se aconchega, viajando de costas sob a boleia, acenando um lenço de bolinhas, até a primeira curva apagar aquela digressão valorosa. 
Leva o lenço à cabeça e prende-o sob o queixo bem esculpido, refaz mentalmente os momentos pulsantes, sobretudo próxima a Eric. Mistura de melancolia e êxtase se apoderam daquele corpinho a sacolejar na penumbra, para lá e para cá.
Tom, em mudez facultativa, apressa a ofegante parelha para escaparem ao negro véu noturno que se acerca. 
Após romper a montanha, estar no lar é um alívio desgastante: Esvaziar toda a carroça, chegar trato aos animais, ordenhar ligeirinho os caprinos, preparar ovos mexidos com nozes, enquanto as brasas já assam uma farta batata doce.
O chá das lisérgicas e perfumosas cascas de bergamotas selvagens, trará o relaxamento necessário à noite indolente. Tom, em olhar pidão, o necessita com todo vigor.
A lisergia do chá equilibra emoções, irrompe sentimentos suaves, traz um entorpecimento flutuante, onde todos os fios de cabelo, energizados, ganham vida própria.
Tom tudo faz por estas murchas cascas nefelibatas, assim como vários outros homens (viciados) do vilarejo – usufruindo, lentamente, a letarga herança indígena.

Blanche 15: O domingo em Riolama

Blanche se aninha na carroça, agora envolta num leve tecido devido à nuvem poeirenta. Eric desce a seu lado pretextamente pelo pé enfermo, que inchou levemente.
Enquanto os outros três tagarelam absortos na boleia, a garota roça seu pezinho ao dele. Aprovisionada em minutos tão substanciosos, lança olhares abstêmios a seu preferido. 
Mais uma curva e já se avista o garboso Vilarejo: Contempla-se a estradinha emoldurada por quatro propriedades “urbanas” dando fundos ao luxuriante rio, bem lá embaixo, à direita dos carroções.
À esquerda, temos a branca capela sempre a sorrir, com a sineta reluzindo no campanário e seus utilitários anexos, e mais duas propriedades, encravando-se longitudinalmente no íngreme sopé. 
Num solavanco, a menina é lançada em Eric. Oportunamente se encostam de forma acetinada, para só depois retomarem as posições originais; logo haverá público exigindo a compostura.
Os pelos do braço esquerdo de Eric ficaram eriçados: num gesto discretíssimo ele lhe demonstra, carinhoso. Ela rapidamente atira-lhe um beijinho mudo, fala qualquer coisa para disfarçar e tudo se normaliza. 
A idiossincrasia desta região se faz, mesclando a cultura indígena nativa, negra remanescente da escravidão, e de brancos oriundos de localidades tão diversas, contudo europeu, dominadores.
Amor e ódio dançam aqui, impossibilitados de se amalgamarem (e de se repudiarem) totalmente, um barril e um pavio no vilarejo “Riolama”. 
Apeiam todos, Rob e as crianças aguardavam ansiosos. A traquina Acte reluz num vestidinho florido de garota branca, feito em costureira, pois a mãe índia não dada a estas artes.
O lencinho à cabeça, com um farto barrado no mesmo tecido, complementa o visual. Tem o maroto sorriso em janelinha, enquanto corre descalça, numa timidez misturada a excitação. 
Um último olhar sigiloso dirigido a Eric, e apartam-se inquebrantavelmente todas as damas, rumo ao anexo.
Novidades após sete longas semanas... e o esperado reencontro com a amiga Ariadne! Seria este o último? Após o desenganado casamento estará tão longe, tão triste, tão sozinha. 
Terminadas as orações, unem-se todos para um descontraído colóquio e piquenique sob as arvorezinhas, porém Blanche seguirá no carroção do pai para a estância, delimitada pelo seu saudoso "Orgástico Rio" (a tradução não é literal, pois não há equivalente em nossa língua para a denominação indígena do fértil rio).
Num abrupto e instintivo ato, Eric rodopia Acte pelas mãozinhas minúsculas e a deposita nos braços de Blanche: ele sabe ser este o último e precioso toque em seu par, antes do afastamento inexorável `a montanha dos caprinos. 
Após despedidas, Blanche segue com o progenitor e irmãos para lanchar junto à mãe e avó na propriedade rural. Rob nunca pode participar do piquenique na vila, por confinar parte da mestiça família à residência.
Seguem na carroça, entoando singelas cantigas religiosas. A delicada Acte no regaço de seus braços, David e Joe esparramados no assento, a sacolejar. O dia claro confere mais alegria ao descontraído grupo familiar.

25.12.13

Blanche 14: Culto religioso

O sol de arrebol invade o recinto pelas frestas, despistando as movediças nuvens peroladas. No salão, mesa posta com chá de alfavaca borbulhante, pinhões cozidos e bananas da terra assadas.
Ovinos por ordenhar, equinos a arrear, porcos e galinhas a nutrir, antes de todos seguirem à celebração religiosa no vilarejo. O coração da jovem cabeceia em ansiedade. 
Blanche, recostada ao portal num só pé, alimenta curiosidade pela gravidez adiantada da cunhada; conquanto enrubescida e pouco contrançada, nada questiona, nem a toca, siderada pelo tabu. Um novo bebê na família induz uma delícia retorcida. 
Sendo a generatividade ligada ao ato sexual, não se fala sobre o enxovalzinho, sobre a dissimulada barriga por onde seu olhar navega absorto, nem sobre a (perigosa) parição, mesmo que em fala enrodilhada.
Colen, sempre com os beiços arregaçados, não conta nesta segregação, pois entre ela e Sara não há o mínimo sigilo, estão amalgamadas. O parto rústico ficará a critério e responsabilidade somente de ambas. 
Resignada, Blanche entretece as pontas do avental nos dedos indicadores, se contentando com o posto de segunda amiga, sendo apenas a visitante querida e aguardada, todavia não tão íntima.
O apego entre Sara e Colen é carne viva e todo hermético, esta é o esteio daquela. Bobagem tentar ler com esforço míope o pacto ternural traçado nas entrelinhas.
Enquanto a bugrezinha veste seu único vestido à altura da celebração, as amigas seguem à cabana de Sara, vão aprontar as esguias crianças, empanadas pelos dançantes fachos de sol.
Serão duas carroças transbordantes: Na primeira, os caseiros com a família de Sara; em seguida, Blanche com os seus, acocheirados pelo prestativo e nefelibato Tom, de voz velada. 
Os raios dourados chuparam o orvalho e tingem a falda desbotada pela estação seca. Costumeiramente, os habitantes levam seu almoço para o piquenique na Vila, ancorados em mútua hospitalidade. As toalhas abraçam veladamente a relva, numa tímida carícia. 
Temos os pinhões que sobraram, ovos cozidos, queijo ervado e frutas da estação. Blanche, toda nostálgica, fará esta refeição rápida com sua família de origem. Enquanto devaneia, o restinho de cruviana lhe alvoroça os cabelos.
No caminho que segue a nordeste, somente as duas carroças brutescas, não há outros habitadores devido à cadeia montanhosa a sudoeste. Os homens vão acomodados à frente, na boleia, enquanto a menina se recosta lateralmente no piso do carroção.
Eric, quase anestesiado, morde o cantinho do lábio inferior enquanto seu olhar amadurecido penetra Blanche às migalhas, quando lhe vira sorrateiramente a cabeça, nos solavancos das curvas.
Um arrepio percorre longitudinalmente o corpo da garota. As mãos espalmadas junto ao chão de tábuas ondulam acompanhando o curso da estrada. Nenhum som, sôfrego que seja. Qualquer coisa de secreto parece lhes invadir as almas, no toque negado.
Blanche sorve o odor lisérgico do amado através da cortina de poeira, que dança, afogando o quase casal, e desmaia no vento que lambe a silhueta de Eric à frente. Presença pura atiçando a tentação de enovelá-lo.
Aproximando-se do abrupto e trovejante “Rio orgástico”, que galopa por todo o vale, começam as encruzilhadas de propriedades a leste, desembocando nele. A terceira é de Rob, e Blanche indaga se o pai já seguiu. Pela assinatura marcada na terra, sim. 
É o acontecimento a reunião domingueira e obrigatória, junto à capela. O Reverendo Albert alinhava toda a região: Em meio à semana, cavalga as propriedades arrebanhando, aconselhando, politizando.
Seu papel preponderante faz dele O líder. Detém poderes junto ao governo e é apaziguador dos constantes conflitos. Raspa com força o orgulho enredemoinhado nas mentes perdidas.
Charlote, sua intelectual e grisalha esposa, arquiva com lógica própria, numa “Biblioteca” no anexo da capela, toda a documentação referente ao vilarejo e seus habitantes, para que as palavras nunca entrem em divórcio com o pensamento.
Na predominância de lares iletrados não faz sentido armazenar papéis ilegíveis, então quando necessitam de burocracia é à exclusiva dama escriba que recorrem, confiando-lhe cegamente. 

Blanche 13: Encontro entre Blanche e Eric

Após se esgueirarem por duas horas na trilha “Deus me livre”, onde o vento brame incessante, enfim Blanche vê Eric. Traz no pé esquerdo, um rasgo desbeiçado, coxeando num cajado.
Não subiu e não resguardou, há trabalho demasiado. Nestas montanhas não se sucumbe ao sofrimento, apenas degusta-o. 
Apartam-se sorrateiramente do grupo. Ela o admoesta quanto ao desvelo ao ferimento, e ele sorri a dizer que não pode ser assim tão séria aos dezesseis, pois quando sucumbir à terra, ela ainda flutuará em juventude.
Blanche irrompe em murros como furação, ao dorso dele; abomina esta inexorável realidade. Eric aclara que se cruzaram em direções avessas na trilha vitalina: Ela sobrevindo e ele afastando-se.
Estão temporalmente distantes, e o tempo é implacável. Há vinte anos, seu ferimento não decorreria de uma denunciante cicatriz, conquanto agora ainda lhe vem a febre. Eis a bravia regra do jogo etário. 
O ferreiro Occan costura com espinho de laranjeira, todavia a ferida necessita estar fresca, e o candidato, ébrio a toneladas para se desvencilhar da dor!
A castanha linha de crina de equinos, fina e sedosa, arremata a carne dilacerada, num remendo firme. O ferido, torturado às ultimas forças, desmaia e se refaz, intermitantemente.
Eric não pratica estas detalhices. Colen vai marinando seu pé em réstias de ervas todas as noites. 
Então Verna se aproxima, enfia os dedinhos do pé esquerdo em terra solta, tímida; o “almojantar” está servido.
Nestas paragens, a refeição quente e substanciosa é servida pouco antes do por do sol, não importando a hora-relógio. Então cessa-se o lavor, para o refastelamento familiar noturno. 
Mandiocas cosidas a quase se desmanchar, o guisado de coelhos e salada multicor, acompanhados de leite fresco, angariado por Tom às ovelhas tagarelas.
Os favos de mel, sendo mastigados de leve, expelem um exótico eflúvio das fezes secas dos caprinos, a que são retiradas pelas abelhas para o fabrico da iguaria. 
Após o repasto, Walacy tocou insoluvelmente sua gaita. Ao todo, doze pessoas dançaram no amplo salão: Peter, Sara e os três rebentos, Blanche, os caseiros, Tom, e os moradores da casa, Eric, Nick e Scott.
Seguiram-se duas horas de descontração, que são reverberadas a cada visita da garota. Os homens, tão rústicos, se albergam pelos cantos do salão até o dia alucidar.
Na zona rural, andar a pé à porta da meia-noite aduz mal agouro, então não se volta `as cabanas. Sara e Colen adormecem num dos três dormitórios; necessitam descanso profundo, pois prepararão o desjejum antes do primeiro relampejo de aurora surgir.
Sara, franzina, tropeça na penumbra da gravidez, aguardando à luz seu último bebê, todavia não é motivo para esmorecimento. Sempre enviesando um sorriso tremido com a boca vergada. 
Blanche se acalenta covilmente com as crianças, diz remediar a saudade dos irmãos. Conta-lhes histórias indígenas repassadas pela avó.
É uma folia aguardá-la nessa região desprovida de visitação. O trio de irmãos espreita com volúpia cada olhar, cada toque e cada feixe de voz da adolescente tia.

Blanche 12: Tom e sua família

Sábado surgiu, Blanche não desce a sete semanas... Nutre louca saudade por Eric! Acordou na penumbra, chama por Nick no anexo em voz monocórdica.
Tudo deve ser aprontado: Dia turbulento, fatigado, sem serenar. Pretendem iniciar o declive com o sol a tombar para oeste, ainda sobranceiro.
Sobre o leito arrumado, ajeita o vestidinho azul em duas peças, corpete acinturado abotoando à frente, golinha boba, mangas longas fininhas, com a saia se abrindo num leve godê, quase aos pés. 
Nick angariou dois coelhos machos nas armadilhas (as fêmeas são soltas). Serão para o guisado. Por sobremesa, levarão favos de mel.
Presenteará os sobrinhos Bencio, Verna e a bebê Roya com rapadura de amoras montanhesas ácidas. 
Enclausurarão os caprinos para não deambularem ao pasto. Predadores da floresta permanecem à espreita.
O curral de pedras recebeu a tempos, um espaço coberto, desfavorecendo chuva e frio. Os rústicos e destemidos cães farão a guarda (inclusive do chiqueiro e galinheiro). 
Tom estará obstinado à espera: Mãos em punho à boca, aguardando de longe pelas miúdas bergamotas silvestres. O chapéu tapando a cara, o olhar espadaúdo, vestes surradas. Se aproximará sorrateiro, assim que solicitado. Haverá nítida remitência no humor de Nick. 
Alarico, pai de Tom, foi homem amulatado e bruto, porte atarracado, cabisbaixo. Quando já instalado na estância, furtou a mãe índia, batizando-lhe Grace. Toda excêntrica, nunca se adaptou à vida exfiltrada. 
Pariu Tom solitária no matagal, rasgando-lhe o cordão umbilical com os próprios dentes. Voltou com ele atarracado ao seio nu.
Nada comunicou, pois não se esforçava para tal, mesmo que fosse em gestos. Ausente, estranha, vaga, arrebatada. 
Por todo o dia anterior, Walacy e Colen a viram correr desesperada, para lá e para cá, do terreiro ao triozinho.
Não compreenderam ser aquilo um penoso e introspectivo trabalho de parto indígena. Passaram a auxiliar sobremaneira na criação do menino, desde então. 
Quando grávida novamente, já de boa barriga, acolheu furtivamente um índio desgarrado. Numa oportunidade, seguiram floresta acima rumo à reserva, aventando pelos cursos d’água. Extinguiram-se. 
As reminiscências que Tom possuía sobre ela, evaporaram-se todas, restando apenas seu odor nos escassos pertences: Um pente em madeira, ainda com fios de seu cabelo, as tradicionais pulseiras em terracota, fitilhos para prender as tranças. Nenhuma veste ou tecido artesanal. 
Alarico afigurou-se aliviado, cansado das dolorosas mordidas desferidas por Grace. Faleceu dez anos depois, numa queda de cavalo em terreno íngreme.
Só foi encontrado três dias após o regresso do animal, denunciado por camirangas. Enterraram-no lá mesmo, onde se erigiu uma baliza de pedras com cruz em madeira, denunciando o jazigo.
A partir daí, Tom era por si, emancipado. A herança do pai era o caráter e o conselho de que, mesmo sendo tratado às regalias, saberia seu lugar de cafuzo agregado. O trabalho caprichado garantia a altivez, e a paz de espírito garantia a sanidade.

Blanche 11: O dildo de terracota

Sexta-feira: Após as tarefas, a tarde reserva-se à exploração do suspeito “pedregal da suçuarana”.
A quase um ano, Blanche investigou o sítio arqueológico, onde os indígenas faziam cerimoniais, antes da criação daquela reserva, lá atrás da cadeia montanhosa. 
Numa gruta, ela localizou material lítico intrigante, que deseja compartilhar com Nick. Sua avó sempre lhe alertou, num tom cortante, sobre estes locais sagrados e os possíveis espíritos viventes ali. 
Sol a pino, saem montados "a pelo" na parelha de cavalos. A subida é vertiginosa! Há pedras soltas nesta estação seca.
Seguindo a íngreme e profunda trilha dos caprinos, cruzam por dentro do regato, dão de beber aos animais e nesta última curvinha, contornam o declivoso pedregal. 
Deixam os cavalos presos na frondosa e azulada figueira, seguem a pé por entre as pedras. Do lado oposto, rumo à floresta (e reserva), a misteriosa gruta se entorta, contorcendo um sobreposto de três pedras que rolaram a muito tempo. 
Nick, ofegante, sonda de longe a entrada: Numa mureta escavada, há cabaças recortadas na horizontal, desde as bem miúdas até o tamanho de uma baciinha de banho, e também em formato de garrafas, trinchadas apenas no início do gargalo. 
Espia mais adiante, sempre na lateral, um copo ricamente entalhado em madeira, várias facas de pedra lascada, cordas trançadas em diversas espessuras, tecidos rústicos, capim seco formando um ninho imenso. 
Pedem autorização aos espíritos, abaixam-se e adentram aquele corredorzinho. Com pedras médias, foi construído um altar bem ao final. Blanche estremece no absoluto silêncio. 
Encontraram, espalhados por sobre o altar, assim como na ribalta, minúsculos ossos humanos. Um esqueleto incompleto.
Em local de destaque, numa bandeja de pedra, há um impressionante dildo em terracota, no tamanho natural. 
Os dois epifenômenos atraíram a dupla: Blanche está fascinada pelo bebê prematuro ou natimorto. Fora ele vítima de ritual macabro? Já chegara morto ao local, sendo implorada sua ressuscitação? Fora deixado vivo (e preso) numa possível permuta com os deuses? 
Muitos animais habitam esta colossal pedraria, e tocaram no corpinho, quando em decomposição. Não há como precisar a cena, apenas intuir, pelas pistas engastalhadas. 
Nick tateia suavemente o dildo com as extremidades digitais, intrigado: Nunca viu algo igual, tão perfeito, tão idêntico! Terá sido esculpido por um ancião? Por uma sacerdotisa? Por um especial?
Os homossexuais, na tribo, eram tidos como especiais – com poderes sacros. 
Qual a relação entre o bebê e o dildo de terracota? Seria um ritual de generatividade, onde a filha (ou esposa) de um chefe político ou religioso não engravidava?
Será que ela necessitava de um menino para a linhagem familiar e nasceu menina? Será que apenas imploravam chuva para a fertilidade da terra? Blanche e Nick nunca saberão.
Voltaram em silêncio, mas com a promessa de continuarem a investigação em tantos outros locais arqueológicos ricos, abandonados abruptamente na retirada da população indígena rumo a reserva.
Em casa, Blanche preparou um apimentado chibé como refeição, encorpado em carne seca desfiada, homenageando seus ancestrais. Arrematou o prato com o aluá de abacaxi e gengibre, que havia deixado fermentando a dias. Banquetearam-se.

Blanche 10: Nick ama Tom loucamente

Já estamos em meio à semana! Nick então confidencia a Blanche (e somente a ela), sua longínqua paixão secreta por Tom. Expõe sua felicidade resignada, visto que se encontra totalmente confortável naquela relação platônica. 
Expõe ainda a complexa amargura de Ariadne, a filha primanata de Willy, o cuidador de cavalos do vilarejo, que logo se casará (forçosamente) com um desconhecido da cidade grande, amando a ele, Nick, desde que vivia em trançinhas.
Somente escaparia à sina, fugindo dali na surdina da madrugada, todavia para onde? Quem acolheria uma desgarrada (vista como desonrada)? O que seria feito dela numa terra androcêntrica?
Certa vez, uma menina púbere escapoliu por este motivo, para território indígena. Fora estuprada até a morte por índios adolescentes, que arremessaram suas vestes ensanguentadas em frente à igreja da vila, numa madrugada, como forma de troféu (são misóginos para com as brancas).
Os moradores locais acordaram com a gritaria bugre a galope. Tamanha barbárie em plenos idos de 1880...
O pai permutará Ariadne por três cavalos: Uma parelha e um montador. É hábito local estas práticas de dotes em forma de cabeças de animais. Quanto mais jovem e bonita, ou mais velho e deformado o candidato, mais animais.
A garota, com aquela resignação no olhar, é certa que necessita aceitar, pois estará contribuindo sobremaneira com a família, repondo parcialmente todo trabalho despendido em sua criação. 
Fisicamente, Nick é baixo, loiro, olhos na cor mel aguado, penetrantes. Um pouco obeso para os padrões locais. Cabelo levemente esvoaçante, boca miúda e pálida, nariz delgado, com gestos brandos. Anda num leve chacoalhado. 
Ele reservou uma surpresa a Blanche: A avó lhe enviara por presente, um saquinho em tecido, todo com bordados geométricos, nos fios tingidos por ela em castanho, ocre e encarnado. 
A garota abre... Está apinhado com suas favoritas cerejas bravas secas, colhidas pelos irmãos às margens do suntuoso “Rio Orgástico” (pela tradução indígena). 
Sabor de aconchego! De infância ditosa... É a sensibilidade de Nick a lhe proporcionar tanto arrebatamento. Arregaça com os polegares a borda do saquinho e sorve lentamente o aroma concentrado. 
Os dois pés estão unidos por sobre a moitinha de capim, que macetou propositalmente, o corpo arcado para trás, cerra os olhos e ergue a prenda com ambas as mãos. Nick vê graça naquilo... 
Blanche arrasta-o pela mão direita, voando para o assoalho da varanda. Acomodados, vão degustando cada fruto, enquanto decifram esculturas de nuvens felpudas no horizonte leste. Os carocinhos chupados, ela amontoa num canto, sabe-se lá para que! 
Tudo é pacificação num deleitoso olhar sedentário. As casinhas do vilarejo, bem lá embaixo, estão mínimas no crepúsculo. As chaminés cuspindo branca fumaça, formam trilhas sinuosas a interligar-se no firmamento.
Então Nick retira do bolso, o último folhetim de Corda Bamba, e lê para Blanche, as quatro páginas com crônicas, notícias, reclames, e um misterioso conto, mostrando-lhe encantadoras figuras em preto e branco. 
O mais inacreditável para ela, que somente conhece uma mulher alfabetizada (Charlote), foi saber que justamente uma moça, escreve periodicamente os aguardados contos para o jornalzinho.

Blanche 9: Nick, seu melhor amigo

Domingo: Foi mesmo Nick quem elevou-se à Montanha dos Caprinos. Eric convalesce, todavia encontra-se bem. Teremos então, uma semana quase festeira, de criatividade e leveza.
Para tal, ele visitou os familiares da amiga. Rob e Erin enviaram conselhos, saudações, folhetins, sementes. Lastimam a distância da filha, conquanto regozijam-se por sua pluma sina. 
Nesta região, traz auspiciosidade doar sementes raras, principalmente aos mais íntimos, todavia muitas não germinam, ou quando nascem, não vingam nesta pedregosa, fresca e quase seca região, com botânica rica, porém peculiar. 
Uma deliciosa erva aromática, que Blanche necessita para os queijos, será semeada com préstimos, acompanhada de perto. Papai trouxe de sua última viagem à “Corda-Bamba”, comprada a um boticário! 
Nick é inquirido a repetir fidedignamente cada fonema, cada entonação de voz pronunciados na propriedade paterna dela, e a lhe descrever cada cena que presenciou. Ele se rende e narra... 
David, o irmão mais velho, com treze anos, continua resoluto auxiliando o ferreiro do Vilarejo. É empreendedor, astuto, ligeiro. Ainda em porte infantil, se faz homenzinho nas ações e atitudes. 
O Senhor Occan é deficiente físico: a perna esquerda improdutiva. Tão magro e tão loiro, faces róseas... Exímio em artes e ofícios: Domina a metalurgia, sapataria, atua como cabeleireiro e enfermeiro masculino. 
O irmãozinho Joe, com dez anos, frequentará a escola com os garotos maiores. Colabora sobremaneira nos afazeres rurais e já demonstra dons com trabalhos em madeira. Tão tímido e escafunchadinho. 
A avó Lisa, instrui Acte, de sete anos, nos esforços domésticos, e nos insólitos saberes indígenas, que anteriormente dirigiu `a Blanche: São os poderes das ervas, observações climáticas, culinária, a cultura tribal. 
Acte trajava uma veste indígena, pulseirinhas de terracota (especialidade da avó), colar de sementes. O cabelo trançado, foi preso num fitilho de crina de cavalo. E está banguelinha! 
Nick apenas omite sua percepção sobre Erin, que lhe importuna a tempos. A mesma aparenta a ele, não estar confortável naquela armadura de esposa prestimosa. Pode deter segredos presos com tramela em um espírito arredio.
Blanche nunca foi apegada a ela, que lhe era naturalmente arredia, e nem tanto ao atarefado pai, embora os respeite profundamente. A avó era seu carrapicho, com ela ocorriam os segredos, os socorros, a intimidade familiar em seu ápice.

Blanche 8: Expectativa - Eric ou Nick?

Enfim, sábado! Peter iniciou seu declive pela penosa trilha “Deus me livre”, que plantou pedras soltas para ele. Resta a deleitosíssima solidão para Blanche.
Não forçará as expectativas; caso Eric não suba, é vez de Nick, o melhor amigo da garota. Ele é o único membro familiar alfabetizado, e lhe abre horizontes através de diálogos e leituras em voz alta.
No início da adolescência, permaneceu em internato, por um biênio, na cidade grande mais próxima, de nomenclatura indígena. Em tradução aproximada: “Corda-Bamba”.
O termo conflagrado é devido ao fato do antigo lugarejo ter recebido, como quem abre a fenda à Lúcifer, os primeiros povos brancos àquela região. Foi um início esmolambado. 
A cidade conta agora com quase 5.000 habitantes, possui uma tecnológica linha telegráfica, e reivindica uma ramificação da via férrea. Inúmeros povoamentos orbitam-na, invejosos. 
Nick obteve experiências e conhecimentos atípicos à sua limitada comuna, tornando-se um rapaz urbanoide, ícone entre seus pares. Um conselheiro e confidente, com força política. 
Adquiriu alguns livros, que conduz sob as axilas. Ao principiar uma leitura, logo um círculo é formado ao redor. Homens analfabetos correm a perplexidade ao longo da pele, tentando compreender a lógica daquele emaranhado de rabiscos. 
Somente ele conhece (parcialmente) o pesado segredo de Blanche e Eric. Assustou-se pela artimanha dela, utilizando Scott para pinguela nesta aproximação, e viu criança florindo de Eric... 
Então solicitou a ela, que em sinal de respeito, nada dissesse a seu adorado sobre a estrepitosa revelação. Nick é de uma imensa tolerância e generosidade para com a vida alheia. Digerirá aos poucos.
A basbaque paixão deste par faz-se transparente, contudo todos supõem ser dela pelo “Esposo” Scott, e dele por sua falecida Alexia, ainda a perdurar após tantos anos finada.
Alexia morreu de parto tão jovem, levando consigo a filhinha num diálogo sofrido; algo típico por aqui. Estão enterradas embaixo daquela amoreira de troncos contorcidos, na última curva da trilha. Era seu local de predileção.
Após longo e difícil trabalho de parto, a menina nasceu sem vida, era grande... a mãe então, sentindo uma enxurrada a transpassar-lhe, foi se esvaindo na hemorragia, até perder-se, para o desespero traumatizante da família e agregados.

Blanche 7: Eric acidentado

Quase finda a desgastada semana, e Blanche discerniu aos poucos, que Eric sofreu um acidente no trabalho. Não muito grave, porém Peter, por fulcro, o substituiu. Aflitas lagriminhas rolaram quentes na ribanceira do rosto, à escondida. 
Ela não puxará agrado à pradaria; ficará encarapitada na montanha, enfiada na distância. Encontra-se fastidiosa de Peter por hora, o que provavelmente é recíproco, por seu murmurejar solitário no tardeando.
Apesar de avarento, sexista, rabugento e tendo cisma contra indígenas, é homem sem concupiscência e pai aflissurado, capaz de trazer à família o ouro do sol. 
Sara, sua submissa esposa, que o mira com olhos tantinho fechados, está grávida do último bebê. Na cultura local, após o nascimento da quarta criança, o esposo passa a pernoitar na tulha, paiol, celeiro, ou algum anexo construído para esta finalidade.
É a forma tradicional de planejamento familiar. Ele apenas volta ao convívio marital noturno, caso uma das crianças venha a óbito, trapaceando os anjinhos, o que infelizmente não é raro.
Quando um casal burla as regras, desequilibrado no ardor, e o quinto bebê surge, o genitor é hostilizado na comunidade eclesiástica a que pertence e desintegra-se na vergonha.
Seu primogênito é Bêncio, um mirífico garoto de oito anos, agitado, trabalhador, falante. Seu olhar, verde claro correndo para um azul acinzentado, quando alguém acende a luz solar.
Iniciou seus estudos com a esposa do Reverendo, Charlote, mediante um honesto valor fixo mensal, pago antecipadamente. Vai saltitante, enchendo a trilha de alaridos.
Professora leiga, ministra aulas no anexo da igreja, às segundas e quintas-feiras para os garotinhos, `as terças-feiras para os mais avançados, e futuramente iniciará às quartas e sextas-feiras com garotas (Será?).
Não é hábito meninas estudarem; Charlote luta por esta possibilidade junto às instâncias religiosas superiores. Deseja tirar-lhes tantas palavras presas dentro do serrado dos dedos.
Caso aufira, necessitará do auxílio de um rapaz alfabetizado para os dias com aulas masculinas. Sairá com as meninas na direção da vida. Vida temperada no arzinho encantador das letras.
A comunidade ainda não condiz, pois arcaria com mais uma remuneração, somente para estudar "inutilmente" as mocinhas locais, com seus dedinhos rijos a cambalear!
Provavelmente no início, surgirão parcas e pedinchonas candidatas, com a parlapatice do povo montada em seus movimentos, que semelharão timidez e não serão. 
Quanto às outras crianças de Sara, Verna de seis anos, e Roya de três, já demonstram comportamentos tipicamente femininos (submissos), aprendidos à risca com a mãe, conquanto o pai almeja que recebam alguma educação formal, cutucando graça de viver.
Seu sentir cuidadoso é de que a família esteja sempre no arrepio da vanguarda, por serem o clã inveterato a se instalar na região, consolidando a primazia.
As obductas terras do Vilarejo pertenciam a seu avô Jhony, o desbravador. Robusto, enfrentando um sol dono do mundo, chegou de remanso. Olhos regurgitados na imensidão vazia.
Ele e os seus,crescendo em si mesmos, erigiram a primeira capela em local bem próximo à igreja atual. Uma cadatupa de poesia no ermo sem fim.
Este fraco arruamento tem se desenvolvido asperamente nos últimos tempos, bordando o vale emoldurado por tão vastos serrotes, onde cada vez mais as propriedades vão se subdividindo em outras tantas.

Blanche 6: A má surpresa

Prelúdio de arrebol domingueiro na Montanha dos Caprinos: O galo a cantar em voz erudita, o balir já de algumas cabras precipitadas, despejando um bom dia.
Blanche desperta em sobressalto. Quinta semana e o idílico Eric está por vir! Arruma-se ligeiramente, uma imbira seca de bananeira enlaça os cabelos negros.
Dia ainda sombrio, voa ao córrego com seus limpos paninhos. Escovação esmerada: embrulha-se um fino trapo por entre o dedo indicador, juntando uns fartos brotos de erva aromática. Esfrega-se ligeiramente, enxaguando em água de serra.
Rumo leste, o primeiro faiscar do dia. Hora de correr descalça para a velha porteira no muro de pedras. Na semana de Eric, ele rasga a madrugada para aproximar-se o quanto antes.
Naquele lajeado justaposto em enormes pedras soltas, Blanche se vê empoleiradinha estrategicamente a mirar o precipício, com a trilha "Deus me livre" em acesso à montanha.
Vai trançando o cabelo quase indígena, e trança também as perninhas magras, que num galeio fogem e voltam à lateral da rocha, trança uma prosa com seu íntimo.
Nada ainda. Nenhuma poeira ou vulto. Uma revoada em alarido corta seus pensamentos e ela se vira insolente, a gesticular que hoje não brinca, hoje a concentração impera.
Salta daquela pedra e distrai-se a atirar gravetos pururucando de secos, despenhadeiro abaixo, que ao rolar, vão arrastando consigo torrões secos de terra encarnada, numa tagarelação animada.
Sua veste tradicional indígena a torna ímpar: uma ígnea forja estética com têmpera perfeita, e numa idade perfeita: Revivescentes dezesseis aninhos conseguidos na amabilidade do tempo.
Os estrangeirados traços do loiro pai prevalecem na fisionomia, ao passo que a pequena estatura, cor de pele e cabelos num contingente de impressionar, denunciam a miscigenação, tão corriqueira na região.
Enfim, a carroça de longe diz presença, enchendo a poeirenta trilha de satisfeita delícia... E o sol já florescendo em botão, lambendo o orvalho. Demoraste.
Fugiu numa das tantas curvas, para despontar mais alto. Domou a destemperada montanha: surgiram os dois elegantes cavalos; ela já segurando a porteira aberta.
Peter? Que foi feito de Eric? Dilapidou os sonhos e enfrentou a escangalhada realidade, cumprimentando secamente o cunhado, que lhe corresponde, num fiozinho de voz quase belicoso. 
O fenecimento da ansiedade abre passagem à angustiante expectativa: Por que a troca? Estará Eric bem? Sem questionamentos extrínsecos e sensorialmente cuidadosa, tenta ler nas entrelinhas de seu agir!
Ao serrar a porteira, pula graciosamente na rabeira da carroça em movimentos sinuosos, com forçada naturalidade. Será uma longa e pesada semana, com trabalho (e carrancas) em punhados.

Blanche 5: Montanha dos Caprinos

Na nubívaga montanha dos caprinos é sábado no horizonte encandecido: Troca de rodízio. Scott, todo aprazível, desce à pradaria, para amanhã cedinho alçar o dileto Eric.
Ele e Blanche carregam o carroção com os famosinhos queijos ervados. Suas roupas limpas, dobradas, vão num balaio de taquara, frutinhas silvestres como concussão às crianças de Peter.
O inverno se aproxima e a lavorosa dupla fez reparos na cabana de troncos (e no anexo): Vedaram com cera de abelhas todas as frestas, reforçaram o telhado, que admira os entreveros de luz e trevas.
Faxinaram por completo, aproveitando as tardes ainda soalheiras. A despensa, na mansarda da cabana, num aroma inenarrável, tem fartura de frutas secas, abóboras maduras, castanhas, mel, caça defumada.
O pequeno jardim, ainda verdejante, salpica-se cá e acolá com florzinhas silvestres, que se jogam ao sol. Os três cães pastores ainda estão adiposos e fortes: buscam facilmente seu próprio alimento.
A garota acha-se repleta em ansiedade a cada cinco semanas, absoluta teofania: Eric, o fulgor, está por vir, enquanto a brisa dialoga sobre ele com a montanha!
Preparou ambrosia de cabras com rapadura. Não se obliterou de Sara - deitou um bocado na cabaça para Scott entregar-lhe. Foi ngolindo o aroma com terrena satisfação.
O estrépito do carroção faz balir o rebanho, é hora de iniciar a descida, para não perder a preciosa insolação. Um último buquê daquela árvore perfumosa: É para Colen, a apreciada caseira, de todo coração.
A passagem arriscada, pela falda tão íngreme e com pedras soltas, faz Blanche recomendar prudência a seu protegido, ela tem "pensão" por ele neste percurso traiçoeiro, com curvas carrancudas.
Mais de uma hora ziguezagueando e sacolejando, forçando os dois cavalos robustos que puxam o carroção rabugento. Nada maléfico acontecerá, e na manhãzinha, a vinda do arco íris - Eric!
A paixão inocente, inequícia e transcendental da garota, se contrapõe a um amor amadurecido e rabiscado, transido em sensação de torpeza, pecado e sigilo por parte de seu estimado.
Após os derradeiros afazeres, ela adentra a cabana, senta-se na escadinha de tábuas vazadas e convoca os cães. O sol se pôs sem adeus e a mantilha da noite cobrirá ligeiro o horizonte.
Tudo é serenidade, está ensimesmada; nem o insistente tamborilar da tribo no oposto da cadeia montanhosa, saudando a mudança em quarto de lua, a dissolve em outro pensar.
Já na enregelada noite fechada, acalentar-se é conveniente. Não há medo, nem solidão. A menina mestiça é pura expectativa, enquanto dialoga com dentro de si.

Blanche 4: Após quatro anos

Blanche jogou-se toda nos seus 16 anos. Mulher feitinha, fragilidade autodemolida. No rodízio para auxiliá-la na montanha dos caprinos, sucedem-se Nick e posteriormente, Tom.
Nick é celibatário, todavia nutre uma arrebatadora paixão secreta por Tom. O fato de não haver-lhe uma migalha sequer de esperança, faz com que entregue-se ao celibato em louvor a este nobre sentimento.
Conhece Tom como à sua própria alma, por terem crescido juntos nos entreveros, e mesmo desconfiando de que ele leia seus pensamentos, nunca ousou confidenciar-lhe tal arroubo.
Tom, por sua vez, é assex convicto e confesso. Prática corriqueira neste local e época, onde o sexo significa casamento e ausência de matrimônio, o natural celibato, naquele olhar de coisa nenhuma. 
Há muitos solteirões (termo da época), e grupos de irmãos (de ambos os sexos), que evitam núpcias. Se esquivam, evadem-se, cautelam-se uns aos outros comunitariamente, embora muitas mulheres desposem-se forçosamente por estranhos arranjados.
Também há casos em que, dentre grande proprietários de terras, os irmãos mais velhos impedem casamentos dos mais novos a qualquer custo, sobretudo para que não haja herdeiros na próxima geração a competir com seus próprios.
A timidez, a falta de pretendentes, a homossexualidade, medo da responsabilidade familiar, da submissão e parição (de altíssimo risco à época), o comodismo e a assexualidade estão imbricados neste emaranhado, onde a razão dialoga com forças abstrusas.
Os homossexuais, aceitos com alguma reserva na colônia, são denominados "invertidos", todavia não podem se manifestar exacerbadamente, devem apresentar-se contidos como as comportadas águas do lago.
Toda menina-moça, após a primeira menstruação, passa a usar o coque, com o cabelo cobrindo as orelhas (obscenas), e lenço preso ao queixo, com as pontinhas a acariciar o colo, sobre a roupa.
Os travestis, mais "estranhos", são estimulados a ser ermitões: construir, decorar, zelar e realizar serviços religiosos numa pequena ermida, afastada do vilarejo, a viver de pequeno roçado e caridade.
São parcos na região, obrigados a levar uma vida paralela, alisadinha no macio da noite. Em público, chegam a se tornar veneráveis, realizando curas, aprofundando-se na arte com ervas medicinais, por sua alta sensibilidade.
Conquanto aqueles que praticam a abstinência sexual indiferente, são apreciados com satisfação, visto não possuírem trejeitos, não escandalizam. São tidos apenas como altruístas eremitas (vivendo sós em local ermo).
O casamento "branco" também é trivial: onde o casal já se une, com votos religiosos para a abstinência sexual, e o Reverendo anuncia pomposamente a penitência à confraria jubilosa! 
Tom não busca sequer atração romântica com as moças do vilarejo, pois qualquer olhar maior, poderia forçar um matrimônio indesejado, como um tiçãozinho de brasa a acender o palheiro.
Quando interpelado por outros homens sobre a pertinência de contrair uma esposa (e filhos), responde abrupta e ignobilmente que já habita com as cinco concupiscentes manas.
Na verdade, se refere a uma prática também corriqueira, de liberar-se através da masturbação, utilizando os cinco dedos da mão esquerda, mais delicada que a destra (repleta de calosidade pelo trabalho braçal).
Nick sublima suas aspirações amorosas através da religiosidade, da poesia e da música: compõe, toca e canta na celebração dominical, discretamente como o andar rastejante de um tracajá.
Contempla Tom sempre próximo: gestos, voz, odor, olhar, trejeitos ao se movimentar. Tudo sem nunca tocá-lo, pois sabe que seria repelido, e este ato o feriria, tamanha sua sensibilidade.
Tom daria sua vida por Nick, sem pestanejar; é o único "parente" que possui. São manos de sangue por opção e por ritual. Tudo faz por ele, tudo que o melhor irmão faria. Menos o incesto.

Blanche 3: Mais um ano se foi

Mais um ano se irrompe a ombros largos: O genitor, Rob, informa `a garota que sua idade alterou-se, e 15 anos é data considerável no mundo civilizado. Todavia, desde quando Blanche, a mestiça, se interessa por civilização?
Do que realmente importa-lhe, tudo ela detém: saúde, a cabana, vestuário indígena para a montanha, e "civilizado" para a pradaria, goza de sombra boa e água fresca, castanhas, mel, frutas silvestres (frescas e desidratadas), carne de caça, alimentos cultivados, ovos, leite de cabra, ervas (chás).
O que ela possui furiosamente, além das duas famílias, é o seu venerável amado. Ele ali, a cada cinco semanas, desmensuradamente derramado nela!
Trata-se de uma garota com beleza excêntrica e peculiar: cabelos de ébano, tão lisos! Pele cor da primeira enxurrada primaveril...perfume de relva amassadinha aos pés descalços.
Os olhos de jaboticaba, fixos e penetrantes, não são envoltos em mistérios, conquanto de cristalina nudez. Blanche é mesmo transparente ao amarelo da montanha ensolarada.
Os perturbadores traços do rosto, receberam um tempero mais forte daquele imenso pai loiro, que da "escangalhada" população nativa pelo flanco materno! Sincretismo.
Nenhuma moça, por mais que deslise, se faz verossímil a ela no vilarejo. Seu corpo esguio e pouco alongado, sua serenidade qual espelho d'água, a fazem absoluta em si. 
Agora, com feições de mulher em carne ao vivo, ficou toda perceptível nas visitas à monótona comunidade. Exala uma jovialidade típica de debutante, negaceando a adolescência. 
Sua autoconfiança, de quem foi formada envoltinha em apoio, a deixa incontestavelmente flutuante, sem descomedidos medos, sem timidez estéril. Namora escandalosamente com a vida.
Senta-se junto às outras mulheres, nos serviços religiosos desta manhã de domingo, onde Charlote, a transcendente esposa do reverendo, desembrulha a maçante celebração, no anexo da igreja.
As vozes em coro, de damas em todas as idades, repicam baixinho nos hinos religiosos, evitando se contrapor à celebração oficial, realizada pelo grupo masculino, na capela, comandada pelo Reverendo Albert.
Hoje é peculiar: O pai conduziu a cremosa irmãzinha Acte, e esta se atarraca à Blanche, temerosa. Mãe e Avó evitam comparecer à civilização, se esquivando de olhares impróprios - afinal, são índias "puro sangue", da reserva.
Ambas foram contundentemente rebatizadas pelo pai com nomes brancos e estrangeiros: Erin para mamãe e Lisa para a avó. Aceitaram, todavia não de bom grado. Entre si, há o tratamento pelo nome original indígena.
Quanto à Blanche, após três anos "casada", já enfrenta um borrado risco do povo plantar-lhe a língua intoxicada na maledicência, pela não prenhes.
É perfeitamente encontradiço mulheres “secas”, contudo a ela junta-se o agravante de não viver tradicionalmente com Scott e seu visível rebaixamento intelectual. Uma voz lhe martela a nuca.
Esporadicamente, especula-se casamento branco, aceitável em casos de penitência religiosa, todavia o fato não se aplica ao “casal”. Estaria Blanche desdenhando o pobre e indefeso Scott?
O céu, num azul qual olhar escandinavo, doma o enrubescedor friozinho cortante, azeitando a pele das estátuas caminhantes nas gotículas de suor. Findo o culto.

Blanche 2: Dois anos depois

Dois anos atravessados sem grandes novidades, apenas a vida passando e carregando o tempo. A cada final de rodízio pentasemanal, a garota desce nefelibata à arteira Estância.
Vai no carroção ao sábado, sempre à tardezinha. Duas horas de solavancos na arriscada trilha tosca, chega ao vale com olhinhos semicerrados, evitando o manto encardido da poeira. 
Blanche "almojanta" e dorme na estância, quando a lua chega a galope. Assim que a manhã empurra o sol, após o desjejum, todos seguem à igreja na minúscula vila Riolama.
O "Lanche de sol a pino" é degustado com os pais, para amainar a indecente saudade. Mais tarde, volta morro acima, ziguezagueando... infelissícima pelo glorioso domingo extinguido.
Seu genitor sobreveio ao lugarejo como mascate, estrangeiro, vendendo e comprando. Apaixonou-se sem limites (mal de família) pela mamãe, fixou residência e aduziu também da aldeia, a vigorosa sogra viúva.
Forneceu dotes à tribo, em objetos urbanos (subliminarmente comprou a esposa). A sogra auxiliou sobremaneira na adaptação, sempre se desdobrando, e retransiu sua cultura aos netos.
O casal negro da estância, Walacy e Colen, a décadas ali, já não pode trabalhar como antes; foi a Walacy que a garota substituiu na montanha dos caprinos. Ele se sente grato por este peso aliviado, que já lhe fazia trejeitos de agonia.
Eric permanece evasivo, melancólico, e emite algumas orientações a Blanche, pois Scott, mentecapto, tem pouco discernimento para aplicá-las na montanha, no volume impotente das enternecentes ideias.
Ele (Scott) infantilmente serviu de ponte, sem nunca se aperceber, para aproximação grafitada entre a garota e seu único adorado, então é tratado com mimos, feito criancinha de peito, por ela.
A robusta carroça, maior que o mundo, que desceu abundante de queijos especiais e produtos da montanha, retorna martelando a serra com matalotagem para a semana. 
Iniciar-se-á uma semana toda maternal, onde Scott, que de esposo não tem mais que o título, dorme no anexo. Em sua semana, o trabalho brutal: cortar árvores para manutenção, cavar buracos, fazer muros de pedras, é realizado. Ele é imenso e forte, porém todo descoordenado.
Blanche, mestiça indígena e meio selvagem, adora banhar-se despretenciosa na cachoeira que salta esguiamente em degraus rumo a estância, fincando poços profundos, esfarrapando os rochedos.
Despe-se plena em naturalidade e mergulha, dança, flutua graciosa na limpidez aquática, na mais pura sinergia daquela imensidão vazia de humanos, envolta na cortina de vapores.
Herdou a tecnicazinha de fiar e tecer, tingindo lã com cascas de árvores e pétalas de flores. Seus artísticos e felpudos tapetes são usados como valoroso escambo na civilização.
Dos países de origem da população branca, todos herdaram seus nomes, que vão se reproduzindo murmurejantes em gerações, por tradição de puxar agrado.

Blanche 1: O estranho casamento

Então Blanche se matrimonia aos 12 anos, na década de 1800, com Scott, de 15. Um enlacezinho arranjado, como costumeiro (porém, arranjado por ela). Pois a garota é apaixonada, desde seus 11 anos, por Eric, e o admira torrencialmente todos os domingos matinais, da escadaria da capela.
Ela suspirava baixinho, procurava deslocar-se o mais próximo possível, para tocar em suas vestimentas; e quando ele ajeitava o chapéu... era o ajustar de um príncipe tardio!
Sua voz grave, e esgaseado olhar confiante, aqueles fios grisalhos escapando ao surrado chapéu. Seu odor brigando com as flores... Blanche quase desfalecia ali em segredo. 
Sonho realizado, passa a viver desvencilhadamente na cabana, ao topo da montanha, para ocupar-se do rebanho de caprinos da incipiente família. Local onde somente o vento corre apressado.
A imensa e risonha estância abaixo, finda onde a vista alcança, pelo lado sul. Tudo havia sido adquirido ao "bate estaca", em terras devolutas, pelo avô paterno de Scott, sem nunca chorar dinheiro.
A cada semana, um ente familiar, costumeiramente, realiza rodízio para auxiliá-la com o trabalho masculino, pernoitando na antiga edícula em anexo. Seu olhar, raspando o cume da porteira, sempre aguarda.
Peter, o primogênito, é odioso, estaladiço e reclamão, porém o mais eficiente. Em sua etapa de rodízio, as cercas são consertadas, alimentos plantados, animais melhor cuidados. Sua birra por estar ali fica escancarada, e Blanche mantém uma distância inteligente.
Na semana de seu "esposo", troglodita que é, necessita ser pajeado com as mínimas coordenadas. Scott, corpulento e atarracado, faz-se numa montanha de músculos, contudo de raciocínio deficitário (para os tempos atuais seria considerado deficiente intelectual). 
Nick, o irmão do meio, todo dado às artes, instrumentos musicais, canto! No trabalho, segue lento e minucioso, perfeccionista. Passou a ser o amigo e confidente daquela alminha adolescente. Mastiga o cantinho do beiço sempre que pensativo, com um fiozinho de língua à mostra.
Tom, o empregado fiel, ali desde infante, quase adotado por todos. Distante, pardo, fechado, magérrimo, evasivo, ligeiro. Seus pensamentos são tão miudinhos que somente ele próprio os lê. Jamais se viu lágrima pratear-lhe a cara em regatozinho.
Eric, o arco iris, tira Blanche da Terra, sua fascinação por ele cresce conforme ela mesma também se desenvolve. E agora ali, tão quase palpável, ele dirige-se patriarcalmente a ela, flutuando feito a neblina de branco sem fim.
Suas mãos calejadas, fortes e protetoras, enlevadas na ação do tempo, não demonstram à garota a realidade palpável. Seu mundo é o que ela construíra, a realidade nada imporia àquele coração de galope atropelado. 
A cada cinco semanas, o horizonte se descortina, sua emoção se esbrange à faceira pradaria, e quase num sexto sentido, Eric passa a sentir-se mais atraído pela montanha dos caprinos, pincelado em imaturidade extemporânea.
Tão contagiante a paixão da menina, que ao ser expelida pelos órgãos sensoriais, Eric já não mais vê nela uma criança, e com rápida sofreguidão, apaga, banha, raspa aquele lapso de erótico pensamento mundano.
Suspirante qual um fole, no coração em tropel, Blanche se vê aplacada pelo olhar cobiçoso, pedinte a que Eric lhe arrasta sorrateiramente a cada peneirado transpasse.