27.7.14

Blanche 55: Enfim, Tom!

Tom subiu inocentemente no arpejo manso das ferraduras, e na montanha, sem enganar os pesares, Nick defronta-se agora com a consequente complexidade abismal dalgum ato mais ousado. Metodicamente, baixa o resignado pedinchão olhar de cobiça.
Agir é tão árduo quanto torturar pedras em nuanças grisalhas, contudo sua força em desejar e fraqueza em resistir ao ser desejado expulsa qualquer pontinha de brio. Serrazinado com o inconfessável sonho de concubinagem, treme-se todo o interior, escoltando um perturbador olhar oblíquo.
Nick se apodera febrilmente de esperanças, numa satisfação violenta e picante. Recrudescendo em sua perseverança, ergue esforço inquebrantável com eterno ar de cobiça, possuindo Tom em avidez, tão apenas com os olhos compridinhos, nunca com as comichosas unhas.
Em tramontana, suplanta freneticamente meras torpezas carnais que tornam o sangue trescaldante, para obcecar e umectar o hipotecado espírito. 
Então,  em respiração convulsa, passeia a língua úmida e em brasa, deliciosamente pelo próprio antebraço, enquanto o venera ao longe com coração prenhe de desgostos e sobressaltos.
Desassombrada quase manhãzinha seguinte, com os miolos estorricados a marulhar em meditação, vai apeando-se da rede em estupor, lutando suplicantemente com o objeto querido de sua existência, na gula viçosa daquela flor noturna quase translúcida em tostada nudez.
Sente o trepar de um formigueiro assanhado coxas acima; todo ele a pedir seu homem, apertando os beicinhos, aborrecido. A espacejada e circunvagante coragem não vem. 
Tom todo é alheio absoluto àquele quase prazer amplo, sorvido sem respirar, de ente eleito para miminho ternurento... Tom é torrencialmente de Tom! E só.

9.7.14

Blanche 54: a caça de Nick

Notoriamente, a dupla Nick e Tom se amofinaram com a notícia da partida do indiozinho. Tom, bem a fundo, ansiava embrenhar-se no sombrio submundo de suas origens maternas. Nick, vocacionado à fruição estética, estimaria conviver alguns dias na reserva, sorvendo profundamente toda a milenar cultura ali impregnada.
Já no enregelante inverno, Nick, em desatinada concupiscência por Tom, ousou desacovardar-se e solicitou, em palavras constrangidas, uma gentiliza à Blanche: que ela descesse à civilização, sob pretexto de estrompamentos constantes. Toda uma semana na deleitável efervescência da pradaria, junto à Eric.
Tal ato, faz com que seja afreguesado por seu venerado amigo, procurando desengastalhar comprazeiramente o reticente relacionamento. E num voo à cabana velha, ajeita meia dúzia de livros e afofa uma almofada em chitão. Arrasta o caixote e escancara a porta, pedindo excelsante ar fresco.
Na ânsia por assenhorear-se da exuberância brutal do amado, o sangue latejava-lhe, rogando aquele homem gotejante em suor pela constante labutação. Supondo-se afrontado apenas pela implacável floresta, fica mais e mais possuído em ferrolhos de delírio e ardor pelo inocentezinho.
A espera infinita: cunha maltratando a fenda... um chá fumegante, as lisérgicas cascas das mini-bergamotas sobre o caixote. Um recender de melissa  bloqueando o raciocínio. A parca mobília em gritos, enquanto  a cruviana a chacoalhar a rede, vai fugindo pela janelinha aberta.
Chafurdando-se em fantasias de lubricidade, que excessivamente lhe assanhavam o desejo da carne, num fremir que punha e dispunha engenhosamente da imagem poética do outro, em devaneios, apalpando-lhe a saborosa quentura do corpo, sugando-lhe o vigoroso néctar dos lábios, sentindo-o na rede, pleno e nu.
Os cães a latir no ar seco e uma teia inacabada refrata a luz. Uma bigorna a esbofetear-lhe o crânio enquanto o coração desce ao estômago; cavalo com bilhão de patas a cavocar vigorosamente o trâmite rumo à montanha. Pujança, moço! Esturra num escandaloso monólogo. 
Mais tarde, defrontando-se com a renhida realidade, a contragosto se encontra numa miuçalha e logo se vê instintivamente mareado pela possibilidade de lapsos e perjuros, dissipando em rezingas a regalia de arquitetar seu ansiado par naquele extenso chão vazio. Vê-se sorrindo sem rir, entre prantos e rejúbilos.

2.7.14

Blanche 53: Ele se foi...

Numa prosaica manhã outonal, assim nos sopetões da vida, um trio indígena, exibindo fumaças de nobreza, aguardava na cabeceira da mata. Com estridentes e pressurosos estalidos entreconfundidos, clamavam pelo garoto, que encantonado, se agitou em sobressalto pelos jorros de luz solar.
Era a somenos e descrente semana de Scott, o subserviente e enfarruscado "esposo" de Blanche. Os insondáveis mistérios que os envolvem, voltarão a reinar escancarados na solidão da alcoviteira montanha.
Ela voou até a tulha, o indiozinho excogitava apressado; um ardoroso olhar de filho que ama sem querer, tão comprido e pontiagudo, lancetou-a em mil palavras mudas. Qualquer som é contra producente...
Aquiescendo, azafamou-se à cabana de troncos, colheu vitualha de matula e acrescentou um tapetinho rajado, no formato circular. Configurava uma mandala em tons degradê puxados do branco ao centro, até o negro arrematando as bordas, sem nunca deslindar-se. 
Entregou-lhe a simbólica peça, banhada em bagas de lágrimas, orientando que o tivesse sempre... aquele delicado desenho circular simbolizava a perfeição daquela convivência trimestral, o infinito daquelas trocas culturais e a transcendência daquela amizade rudimentar.
Numa assestada reverência, o menino puramente sensível fez alusão ao querer paternal que dedicava a Tom e Nick, entregando às trêmulas mãozinhas de Blanche duas tornozeleiras fertilmente trabalhadas. A ela, devotou uma mínima estatueta de suçuarana, entalhada minuciosamente em madeira nobre.
Sem sofrear, picou a ressequida trilha num tropel triplo com apoio de cajado, carregando a matula, a tatuagem escarificada, as escanhoadas vestes rústicas e o tapete penso a um ombro. Carregava uma história de cooperação, de compadecimento, de humanidade pura.
A certa altura, prestes a embrenhar-se entre as enralecidas pedras, retrovertou lentamente o corpo num aceno tão afilado e pusilânime, entretanto tão pleno de efervescente comoção. A anfitriã abanou-lhe o avental, e a brisa, abelhuda que só, encarregou-se de agitá-lo compassadamente, enquanto o vulto sumia.
Reaparecendo em verossimilhança bem acima, próximo aos altivos acompanhantes, formou um escultural quarteto laureado pelo contrário sol matinal, já canículo. Espoucaram-se no viageiro batido da mata, restando apenas o fantasmal silêncio e funil de escuridão por detrás.
Cá abaixo, em meio a raios solares ainda mortiços, tingindo de ouro velho o curral, num relance, Blanche voltou-se de soslaio a seu outro desacertado garoto. Desenvolto, ordenhava as cabritas displicentemente, dirigindo-lhes chistes ingênuos e insossos.
Quebrou o  turvo mutismo do dia cascateando em voz lacrimosa e robustecendo de arrosto um possível presságio desdito. Seus olhos saltaram indagatórios pelo vão da janela que dava ao velado. A sagacidade e argúcia do  assenhorado indiozinho se encarregará de cuidá-lo no recôndito ermo.

11.5.14

Blanche 52: Aridez

O inverno se aproxima de soslaio e o ressecamento do solo, de arrasto desde o estranho verão, arrocha ainda mais o cenário pedregoso, levando a vista a alcançar longas distâncias vergonhosamente nuas.
A pastagem amarelada e rala, a suspirar por esmola,  não supre as necessidades alimentares dos equinos, caprinos, ovinos, bovinos, muares e alguns mínimos bubalinos de Riolama, em pânico alvoroçante. 
Já magricelenta, parte dos rebanhos segue em comboio rumo à Corda Bamba, sob miseráveis farrapos de nuvens esvoaçantes, no único branco anilado a marcar o panorama acrômico. 
Resguardando os olhos do solão rutilante, os condutores, dentre eles o determinado Tom, se habitam sob imensos chapéus de palha crua bem trabalhadinha em sofisticados desenhos geométricos.
A toada rala e rastejante segue intermitentemente, com paradinhas abaixo de escassas árvores desfronhadas, quase defuntas pelas constantes podas pro de comer aos bichos. 
No pouso noturno, se valem de taperinhas viúvas à beira da ruivíssima estradica, entulhadas do nada. Na noite fresca, um céu de transparência doída chamuscado de sóis afasta a esperança de um sertincerto abluvião tardio.
A valia dos judiados animais cai abruptamente, e a iminência de mortes é escandalosa. Os condutores, serzinhos tão descomplicados, tentam criar ideias de forças atávicas para próprio uso, expulsando agouros preconcebidos. 
Um tropel de cavalo crioulo desloca uma verruguinha ali negrijando entrecortadamente na noite sertaneja, numa perfuração da estática paisagem: é Peter que retorna em vagia, após negociação árdua de somente parte do plantel. Desquebrantou a fascinação dos agregados, ávidos por notícia enfatiotada.
Atochados ao torrão duro e recobertos apenas pelas lufadas da cruviana madrugadeira, dormitam até que o grosso da noite se afaste. De supetão acordam todos, estremunhados com o pedante estridular do urutau, num toco estéril. 
Em voz pastosa e bocejos rasgados, vão escorregando os bons dias habituais e cuidando da lida, enquanto o rubro do sol tenta clarear canhestramente o serrote magricela. Uma ovelha tão lanzuda chamada cinhaninha, está de mal a pior, e seguirá montada à burrica, em intensa tentativa de salvação à criaçãozinha. 
O rio orgástico anorexou-se num impotente filete d'água, onde no arrebol, um garoto encardido, com uma cabaça, colhe goles. É prá lavar a ramela da cara dos peões e derreter a rapadura deliciadamente num caldo fumegante. 
Após a tamborilante reza mastigada e dolente, aos punhadões, empurram a nutritiva paçoca de farináceos com jabá e oleaginosas. Um cão enfurecido arrebanha a manada, explodindo em brutalidade, tão delgado pela ausência de caça / alimento.
Num esgar opinioso, o gado emurchecido refuga diante do desapiedado capim seco oferecido sobre um chão semeadinho de pedraria, mais nada. Um dos moleques, correndo desatinado, ataca o  lagarto teiú e salva um futuro almoço ensopado.
Seguiram cabisbaixos e dilatados. Na parada de sol a pino, acocorado ao tronco duma paineira seca, Peter organizava a divisão de folhas verdes à manada mista, bem defronte à capoeirinha cujo facão de Tom mutilara galhos preciosos.
Reses escanzeladas, de ossos pontiagudos a fincar o couro dos quartos, consumiam competitivamente os suculentos brotos que os dois moleques da vila espalhavam pela relva  enxuta e aloirada. 

16.4.14

Blanche 51: Cabeça de leitoa

Em Riolama, a sineta da capela lecionada por Karly, de súbito ressoa com reboladeiros repiques. É tardinha de sexta-feira, já com a boca da noite desapressada a domar o mundo.
Nick, coadjuvando Blanche na montanha dos caprinos, transfigura-se em atônito sobressalto. Retira do fogo um tição alaranjado e vai chupando devagarinho a palha. A cusparada no terreiro escarra também sinistros pensamentos. Não  desfita a Vila, enlevado pelo rebate afligido: "Blém, blém, morreu alguém / Blém, blém, morreu alguém"...
Um de seus rúpteis enfermos teria cruzado inapelavelmente o trespasse? Qual deles, ou nenhum? Será decesso súbito, qual escanzelada garotinha picada por cobra encastoada, na recolecção de ovos duma moita erma?
A gélida noite já na chegança volteando em luta com o crepúsculo, céu de vidro apinhando-se em brilho e a dupla arremata o almojantar introspectivamente, todavia especulando sequiosa sobre o suposto sucumbido. Tom, habitado por alargada brandura, quiçá assoprará a notícia sobre o funeral, no broto da manhãzinha. 
Sendo Nick quase psicagogo, sai em campeação aos combalidos com Reverendo Albert, outorgando cada enfermidade e apontando possíveis tratos com ervas medicinais, para adoçar um destino rumo ao mistério, unidirecional e irreversível.
E sucedeu-se: o arriar do negrume revela Tom, assim quase jogado, despontando pela trilha tortuosa, deixando evaporar um rastro de poeira. Quando o tropel já se faz sentir, Nick, brigando com seus eus, aligeira-se até a porteira em arquejo inexprimível.
Quem sucumbiu foi Gerrah, uma enigmática anciã sua abroquelada, supostamente com 104 anos. Supõe-se, pois não portava documentos, contudo deu entrada à antiga capela aos possíveis 16 anos, bem mulher e de coração quente, quando casou-se, após fuga, com um frondoso índio desgarrado.
Foi um dos primeiros conjúgios de Riolama, a exatos 88 anos, tendo o avô de Nick por pastor provisório... a família angariou gleba de terras sem franquia de confiança, quando os silvícolas ainda eram consternadamente retirados, encolhidinhos de silêncio. 
O simplezinho e árido torrão, num vazio escandecido, é o mais próximo da cidade de Corda Bamba, enrodilhado na curva fechada do leito carroçável. Desde então, Gerrah vive em presença pura na caverna indígena, de janelas cegas.
O casamento? Não vingou. Na noite de núpcias, de frio cortantezinho, acomodados numa gruta bem acima, onde o pai da noiva fez questão de demarcar território, algo desandou.
Gerrah retorna com expressão de nunca mais, soqueando a noite fechada com seu pouco peso, espalmando a porta da caverna nuns gritinhos assim de dó. Quando a irmã mais velha abre, a pega ensanguentada pelos espinhos da capoeira, apavorada no grosso escurão da noite.
No seguido, acomodada à maciez de sua antiga esteira, passa o restante da noite enganchada à irmã (madrinha), nuns finos fôlegos tiradinhos qual água de poço.
Ao alvorecer, com plácidos ânimos, a Dinda, nos jeitos repletos de brio, lhe indaga em bonança. Na resposta, a determinada nubente farfalha chuviscando voz alastrada:
_Creioendospadre, Madrinha, num é que aquilo se parecia com uma cabeça de leitoa?
Dinda, já casada e vivendo nos comuns, com perspicaz sapiência, sentiu por bem colocarem uma indigerível pedra por sobre o escrupuloso assunto.
O índio escalavrado, após dias amassado em pouco caso, todo ele deixa a caverna e segue com um grupo rumo à reserva. O miolo da manhã deslizava manso a enobrecer-lhe o ânimo.
Com o escorregadio do tempo, o pai viúvo finda-se, deixando de rebotalho na gleba o casal Dinda e Peo, mais as três invulgares solteironas: Gerrah, Cecil e Hit.
Um a um, em desmande do destino aos baques vibrantes, foram fechando a noite dentro de si, e enterrados na volta do jatobazeiro, que sombras, almas  e frutos esparrama intermitantemente no terreiro pedregoso.
A Dinda, tal qual a mãe precocemente finada, foi exímia benzedeira, atributo delegado a Gerrah em ritualística profecia no leito de morte, rindo desusada risadona profunda e grave.
A técnica benzística consistia em pronunciar expressões mesmeiras perante o enfermo, que iam sendo ecoadas a cada machadada, desferida implacável e intercaladamente nos lados do portal de entrada da lapa.
Era especialidade da Dinda imiscuir-se com cobreiros, feridas persistentes e outras afecções de pele. Muito útil numa região colonizada por europeus tão pálidos e de olhos desbotados, debaixo daquele arreganhado sol calcinante.
De pele amulatada, uns beicinhos murchos escorregando boca afora, Gerrah era conhecida "a Nega da porteira"; ali era evocada em necessidade de benzeção, tendo por paga  constrangidas prendinhas roceiras. 
Nenhum cérebro primitivo se atrevia a cruzar uma frestinha da porteira sem permissão, tamanha a parafernalha munificente dependurada por aqueles paus retorcidos, quase a ralhar sinistramente com o chegado.
Nick, lambendo o suor em pontinha de língua, segue ao funeral cortando a montanha rumo a sudeste, por compungidas trilhas de bichos silvestres. Toda o Vilarejo (os patriarcas) se faz presente quando o Reverendo encomenda a alma cansada, iniciando com um "pelo sinal".
Uma ensimesmada exigência, tentando brecar a Terra em sua falta: que tudo lhe fosse branco... a mortalha (angariada de antemão), escassas florzinhas campestres, a túnica bordada de mansinho por ela mesma, anos a fio.

18.3.14

Blanche 50: Escarificação

A tempos, o persistente indiozinho vem amolando a paciência de Tom e Nick, os dois a quem ele se apegou neste mundo novo. Num chamado quase onipresente, solicita agudizante auxílio na execução de sua tatuagem sagrada. 
É hábito intrínseco à tribo, após a grande caçada, os púberes passarem por um comovente ritual de escarificação, onde uma figura, geralmente de animal silvestre, é marcada num local estratégico do corpo.
Ele espera transformar a cicatriz da perna fraturada numa obra de arte corporal, diminuindo assim o estigma de estar manquejando e consequentemente cumprir com a conduta ancestral deste povo continente. Sua paixão pelo intento o faz pronunciar a falazinha indígena em sorriso de lágrimas mordiscadas.
Para tal, necessita alguém com dons invulgarmente artísticos para criar uma deslumbrante e única figura, e um executor de pungente sangue frio, pois a técnica consiste em esculpir a imagem na pele viva, com instrumento cortante.
Através de uma formosa escarificação, atrai-se respeito de companheiros e olhares do sexo oposto. Durante o processo de ablação da pele, a dorzinha crônica e lancinante fará com que desmaie e acorde diversas vezes, e perca grande quantidade de sangue, todavia encontra-se municiado com uma coragem arreganhada.
Após cessar a ciumeira irrivalizável e quase irracional, Nick volta ao discernimento e resolve amaneirar a tão sonhada prática estranha e transbordante em atroz crueza.
Esta cultura ádvena o fascina, afinal! Ele se maravilha, se questiona, se assusta; pergunta-se e não vê respostas límpidas nesta viagem atemporal sobre o universo da aldeia estampado no arguto indiozinho. 
Na embrenhada reserva se vive como nos primórdios, os silvícolas contam com as forças da natureza para a subsistência diária: recolecção, pequenos rebanhos, caça/pesca, permacultura.
A exuberância da vida comunitária: os ritos de passagem e de cura; as celebrações festivas; o animismo e confecção de totens; as noturnas danças circulares típicas em volta duma sacra fogueira. Todo este primitivismo "fotografado" por ele através dos minuciosos relatos do garoto, suscita incredulidade mesclada a assombro.
Não apenas uma vida desarmada de qualquer luxo civilizado, contudo uma vida plena, feliz, digna. A divisão social do alimento, de teto, das dificuldades, retira o espinhoso fardo duma existência insegura e carente em acumulação de bens.
Este espelho da vida civilizatória: a estada na montanha dos caprinos, não fez do menino alguém repartido, titubeante com seus valores. Numa personalidade refrescante, ele almeja seu mundo tradicional em detrimento da existência moderna, considerando a possibilidade da coexistência de ambas culturas.
Nick, meio psicagogo, numa rajada de sentimentos, tem a cabeça girando em dúvidas existenciais e o coração espremido com as atrocidades praticadas contra este povo, considerado bárbaro. A barbárie, na verdade, vem do "homem culto" contra ingênuos seres quase infantes.
A técnica de escarificação é realizada na aldeia com lâmina de pedra polida, todavia Tom fará uso de sua baioneta, que manipula com destreza. Blanche prepara um fermentado de frutos e cereais para alcoolizar o rapaz, amenizando o flagelo.
O desenho é fixado no local da pele com o maçarento urucum. Ao final do primoroso trabalho, uma queloide controlada se formará, criando uma graciosa estampa com aspecto de alto relevo, portanto tridimensional.

12.3.14

Blanche 49: E e Indiozinho?

O indiozinho? Esta presença pura já se esfalfa da tulha e prepara o revir à reserva, no sol ainda vivo do vindouro outono. Além da apoucada sequela: uma perna mais curta, não esboça mais sinais do perrengue aborrascado.
Os fisioterápicos mergulhos restabeleceram-lhe a agilidade; toda manhã ele segue a sós pela veredinha, dialogando com os seus de dentro, reavivando a aventura grupal de outrora. Todo ele em respiração se faz ternura, todo ele se exalta extraviado nos espinhos da distância.
O ar que o penetra sobre o leve pisar em folhas secas perfiladas, vai persignando-lhe a aura e alargando sua luz interna. Enquanto paralelamente desenrola-se um longo fio de formigas, ele se achega e mergulha - ditoso, pleno, fastuoso.
Nem ao longe imagina que após seu primeiro banho, abrolhou em Nick uns sofreres com os detalhamentos de Tom. Sim, enquanto Tom descrevia indiscriminadamente as maravilhas da água, Nick se fez de janela cega e transpôs  o óbvio, enquanto a voz do outro chovia-lhe ácida.
Num desatino alastrado, julgou que Tom pudesse, mesmo que por instantes, ter transcendido a cordialidade e se imiscuído no mundo alheio. O coração, numa roseta desmaiada, quase dá sinais do entronizado zelo de amor desmedido.
Cada frase de Tom, jorrava em ribanceira até a entranha do penhasco em que Nick se ancorava. As baforadas rígidas dos relatos a lamber-lhe os finos fios de cabelos encaracoladinhos, alvoroçados sobre os ombros. Velou a hospitaleira voz do amigo,  respondendo com suspiros em largas remadas e escassos piados miúdos. 
Como odiou o indiozinho... como invejou aquele torso em benevolência ao toque (involuntário) de Tom, com sol dançando à volta! Os braços fechando anel, com dedos entrelaçados em tronco qualquer recendiam amargor que Tom nem pressentiu.
Em alucinação, tremia num corpo atorporado, num formigamento encardido, com a sensação de estar minguando, pronto a explodir seus segredos em devassados esturros sobre o anacoreta Tom. Então, da capela, o sino chicoteou-o com suas pancadas. Aquela cáustica anamnese cor de terracota cessou, afinal. 
Nick, ao faiscar os olhos num escandinavo azul, avivava a negritude nos cabelos de Tom. Calcando meticulosamente os dentes num canto do lábio superior, conclamou-o para a assembleia em Riolama. Num sopro em rebuliço, a portinha esgazeada daquela cena encafuou-se na memória, longinho da alma.
Banhar-se com Tom... banhar-se por Tom... enlaçar-se em Tom. Os cavalos, paralelos, seguiam pelo trâmite num feliz estar. Nick descerrava a mão e flutuava-a na silhueta do sonhado cônjuge, simulando de leve, o ritmo encrespado da água em ondas. Expressividade fugidia, absconsa no silêncio dum amor em novelo virgem e lágrimas cruas.

9.2.14

Blanche 48: Colheitas de verão

Blanche, numa lida quase infinda, antecipa a reposição da despensa, no aromático sótão da cabana. Palestrando com seus eus, preocupa-se com a seca que lentamente aniquila a valedoura vegetação.
As safras sazonais são colhidas conjuntamente a seus parceiros e distribuídas pela arejada tulha e paiol. Apenas a ela cabe angariar preciosinhos vegetais agrestes dispersos por toda a região.
Cereais selvagens e grãos indígenas, basilares para a ração de inverno, estão sendo apanhados no período matinal. As tardes quentes, de silêncio quase sepulcral,  são persecutórias de abundante leseira, com bichos enfurnados em covis. A garota emprega neste período o trabalho doméstico, à sombra.
Sem desacorçoar, quase arremata a perfumosa cocção de compotas dos anuais frutinhos silvestres, adoçados timidamente (devido a seu paladar indígena educado) ao caseiro açúcar mascavo, depurado na colheita de inverno da cana. 
Apoiada num banquinho solteiro, que costuma conduzir atado às nádegas, descaroça, descasca, raspa, pica, rala, numa toadinha sem pressa, até que o pincel da noite vá grafitando seus tachos crepitantes.
A lenta preparação de frutas e legumes desidratados discrepa totalmente de anos anteriores: em limitados dias já estão se esturricando sobre o pano amareladiço num desvão da varanda, exalando sabores.
Na margem baixa do curvilíneo regato, a escassa água, embora mais fraca, mais lenta, mais mansa, mais morna, continua teimosamente a arredondar as agastadas pedras, agora quase à descoberta. 
Após trançar alho e cebola em réstias artísticas, para irem ao sol num processo de cura, produz o coloral com sementinhas de urucum bem secas ao causticante telhado, de modo a avivar a alaranjada coloração. 
Os de casa adaptaram-se aos temperos indígenas acaboclados por ela. A serendipidade da culinária desta jovem advém justamente da mescla de culturas, a referir-lhe autenticidade. 
Noutro instante, cavouca à margem do regato, em busca das primeiras batatas de inhame da estação. As folhas, picadinhas fininhas em fios d'aranha, serão assustadas na banha de porco, temperadas com gostosos brotos de amor-seco.
As primogênitas batatas-doce, já espalhadas em peneiras, são veladas (repousam) no terraço para murcharem e concentrarem o palatável açúcar natural. Amendoins e pipocas recostam-se por ali, assim como as ardidas e odoríficas pimentinhas comari.
A mandioca (pão caipira) é amplamente cultivada lá embaixo, na pradaria, pois colhe-se ao outono para o trabalhoso preparo da farinha, goma e polvilho, que suprirão a família por todo o ano. 
Parte das variadas espécies de batatas, abóboras maduras e feijões já se encontram alocadas na tulha, em vistosos balaios de taquara. O milho para os cavalos e prás galinhas será colhido no outono. Por ora, retira-se espigas verdes pro consumo diário, assado ou cozido.
Sementes de bucha, cabaças, pepinos maduros, melões e melancias (todos primos) estão devidamente separados em miúdas cabacinhas, contendo parte da casca, para reconhecimento futuro. Ficam dependurados num caibro do paiol.
Após a recolecção, as castanhas diversas aguardam secagem e limpeza para serem também armazenadas em trouxinhas de folhas de bananeira. Sua preciosa coleta seguirá pelo início do outono.
Os pequenotes frutinhos da pitangueira e as seriguelas atempadamente maduras, em amizade, dividem o mesmo embornal, após a colheita de ontem ao crepúsculo. Um cheiroso ananás amadurece esquecido num cestinho. Fermentarão em um odre, para tornarem-se bebida alcoólica, à moda indígena.
Uma excruciante moita azulada de agave, agarrada ao penedo, lança polissêmicas hastes equivocadas a atacar o brilharento sol. Uma de suas suculentas folhas também comporá o fermentado, com ramas de assapeixe e frutos do camapu (saquinho de bode).
Num olhar arrelampado, Blanche encontra beldroegas, trapoerabas e carurus de  sombra, embaciados sob uma frondosa figueira, ainda viçosos e fragranciados. Serão armazenados dependurados ao teto, para compor suculentos guisados invernosos, em aromas coadaptados.
Sob um céu de azul extravagante, a lobeira no barranco, de perturbada beleza, persiste heroicamente, com suas amargas pelotas aguardando colheita. Num riso forte, a moça retira os frutos acinzentados, pousando um a um na cabaça presa à cintura. As galinhas (como os lobos) degustarão!
Os frutos da mamacadela, maduros e de-vez, serão afixados ao beiral interno do telhado, numa arquitetura triangular, para durarem o ano. São desmesuradamente medicinais.
Em périplo por toda a montanha que abraça o vale de Riolama, arrecada cá e acola, vitualha opulenta e incontroversa, escolada inteligentemente pela avó.
A uma distância prudente, cruza com um velho índio desgarrado, de aparente antipatia sincera e cansada. Ele vaga serôdio, em continuada busca de ajuste a um local de querência. Há objetivação num olhar que evita ódio e mira Blanche por largos segundos, então segue absorto pela trilha delgada.
Sabe furtar-se de desimportantes ajudas imediatas, que certamente o prejudiquem a longo prazo. Aprendeu nas tareias da vida admoestativa, que pedir e perguntar vicia, numa espécie de manipanso, levando-o a fragmentar-se em gente vil.
Insubmissa, ela pressente que o ancião ri estrondosamente, numa epifania interna, sem expelir qualquer som, aparentando receio de libertar o sol pela janelinha dos lábios. Sem esvaimento do espírito, num talento torturado, some-se na curva, esticando prosa consigo mesmo em fala sibilante.

30.1.14

Blanche 47: A vida madrasta

Em Riolama, a rotina segue enclavinhada no avinagrado verão seco, comprometendo colheitas e pastagens. Presos aos espinhosos preços praticados em Corda Bamba, a população, de olhos turvados ao futuro, além da subsistência, conseguirá anoréxicos proventos.
Quando o inverno surgir, ainda mais seco e espantado, não terão como fazer reparos, adquirir equipamentos, renovar a rouparia doméstica, nada... as providenciais doações à igreja, que são uma espécie de "seguro" à comunidade, começam a ralear vagarosas feito um entardecer.
A crua luz do sol tudo alaga, sem nuvem parda a coá-la, cega o apagado cintilão no olhar dos posseiros, alquebrados em torpor à espera que o aguaceiro empape a campina.
Lucano, o vendeiro, necessitou aditar os preços e as vendas caem. A jovem esposa, em cantinela aladainhada e dolorosa, se desdobra entre a ríspida adultez exigida e a afável adolescência desejada, gerando agastados conflitos conjugais em meio às grossas bagas de suor, pela lida feroz. 
O pai, agora viúvo, jaz melancólico e confuso, com momentos de terror que lhe dilatam as pupilas, nuns olhos escancarados de animal espancado. Estira-se ao comprido num canto escuro, alastrando uma expressão apavorada e beiço repuxado, como se um desgosto o penetrasse a carne.
Da cara tão magérrima despendem duas bochechas miúdas, rugosas e pálidas, disfarçadas pela branca penugem rala. Um náufrago em ruínas com escasso sorriso amargo franzindo-lhe o murcho lábio inferior.
Rob, genitor de Blanche, irriga com esforço descomunal, as persistentes plantações anexas à barranca do rio. Nos passos trilhados à rua da vida, repete esta dança de quando em quando. As pastagens já meio secas fazem os animais se locomoverem demasiado, se adelgaçando visivelmente. 
O rio orgástico, todo veemente, perde parte de vigor e diminui o galope. Seu néctar, num brilho agudo e metálico, é evaporado por um constante vento suado, funcionário do sol. O esturro gritado da cruviana desgarrada espalha o lamento da aferrolhada mágoa desta vila.
Numa propriedade, o celeiro ardeu consternado madrugada adentro, por uma faísca insistente que tentou provocar a carga d'água. A constrangida verba da igreja amparará a família, com um mutirão domingueiro para reconstrução. A vitualha? Esta será cedida às migalhas pelos vizinhos, também desfalcados.
Eric, em grandes olhos pestanudos abarcando a paisagem como quem procura um amparo, quebra-se maçado em vagos pressentimentos... mais uma desabrida seca a romper em voz pastosa, insistente.
Blanche, reticente, já nota a moderação no leite e a marcha amiúde das cabras ao regato, com as elevadas temperaturas. O pedregal, presença marcante na montanha dos caprinos, agora se sobressai com violência na paisagem rala.
A propriedade na planície recebe tempestades de poeira, com redemoinhos em mormaço a varrer galinhas e plantações. Os equinos, força da fazenda, necessitam complemento alimentar, contudo nesta época do ano não há. Os animais velhos ficam por lá, num espaço reduzido, mascando limões e gravetos para dar melhor chance aos jovens garanhões.
O Reverendo Albert, com seu cabelo rente e eriçado, farto bigode tapando-lhe a boca, perde aquele amplo sorriso onde lhe somem as pálpebras nas rugas salientes. Os parcos chuvisqueiros são levados em cordas pelo vento, perpendiculares e frágeis fiozinhos prateados.
Fogem os trabalhos extras, as pessoas somem da vila, a caça se apaga nas imediações... pouco se negocia num mundo suspenso à espera das águas, que respingam cá e acolá, numa fugidia ciranda sem respeito.
Orações domingueiras na igreja, encomendas de ritual da torrente aos indígenas, promessas aos espíritos de antepassados... nada muda a decenal estiagem local a admoestar tudo que vive. 
E o áspero vento brame em respiração custosa, derramado impertinente e fatigado, todas as alvoradas, num gritar que morre aflito, polindo as encostas. Os trovões, longe, anunciam uma esperança tola após o relampejar insólito e aberto a chegar pelas frestas.

20.1.14

Blanche 46: Banho de cachoeira

O mormaço de verão baforeja a montanha dos caprinos. Dia claro e gargalhoso, com a branca lua cheia a espreitar pelo cantinho  do céu. Blanche propõe a Tom que conduza o indiozinho consigo no mergulho à piscina natural, no decurso em que ela alinhava o aromático ensopado de lebre.
Todinho encabulado, porém solícito, ele acode a ideia e ambos dirigem-se à tulha. Ela concede panos, roupa limpa e sabão, num áspero balaio de palha, daqueles que se prende balançadinho à cintura. É hábito este banho caprichado, todo final de sexta-feira, devido à descida da serra ao sábado.
O garoto, aclimatado ao nado cotidianamente, levantou-se arrebatado, com adminículo de Tom e do rijo cajado. Um olharzinho sorridente flechou-os farrista. Externamente, a chaga encontra-se cicatrizada, contudo o padecimento ósseo denuncia que a perna ainda inspira ponderação.
Agarrado ao franzino, porém robusto ombro esquerdo de Tom, segue manquetando morosamente pela picada curta, com fortuna mesclada a apreensão. Blanche lhe emite um bonitinho sinal de ânimo e volta a seus quefazeres, na estreita cabana de troncos.
Instalam-se cautelosamente à oposta borda d'água, sob o primário degrau da cachoeira límpida, com frescos respingos a lhes cutucar. Neste lance inicial, como quem ensaia a se despencar, a poética queda d'água, apesar de alargada, não atinge meros dois metros de altitude.
Diversas rochas deslocadas em volta do poço, permitem transpô-lo aos pulinhos, de lado a outro. A mata ciliar sombreia as margens e confere sensação (falsa) de acolhida: pisar em penedo úmido, recoberto por lodo, é tombo quase certeiro, com possível sisudez.
Seguindo abaixo pelo planalto, a cerca de duzentos metros do  vertiginoso despenhadeiro, com mais três quedas absurdas, o regato espraia-se capilarmente, de abraços com o majestoso pedregal. É ali que Blanche iliba roupas, quarando-as ensaboadas ao sol e batendo-as na fraga, a fim de desencardi-las.
Tom, com a inconveniente timidez queimando-lhe a face, esfrega parte após parte, o tenro corpo nu do adolescente, com sabão e bucha natural. O deslizarzinho da espuma camufla o desconforto que sente ao toque num corpo humano.
O mocinho, habituado a constantes atividades grupais, age com a naturalidade devida, indicando-lhe os locais que requerem maior zelo: as costas e os pés. O restabelecimento do peso devolveu-lhe a maciez juvenil, afinal. Após semanas acamado, seus pés varonis tornaram-se sedosos e graciosos.
Para o enxague, Tom, posicionado com as pernas descerradas ao interior do tanque, todo ele encafifado, pega-o cuidadosamente nos braços e o deposita numa pequena laje submersa. Sem vacilo, o rapazote sai nadando desenvolto naquele bolsão d'água, com cerca de dez metros de diâmetro. 
A cena, espontaneamente estética, tira o fôlego de Tom, não apenas pela lindeza daquele corpo translúcido, contudo também pelo nítido benefício que a água demonstra na reabilitação do alanceado. Faz agora sua própria assepsia, entremeando furtivos olhares atônitos àquele ser transformado em brilho, que esbrangeu a barreira do universo físico: galgou uma dimensão onde é exclusivo, pleno, perfeito. 
Mergulhando e emergindo, o indiozinho avança mais e mais, sofregamente a nadar, num impulso desvairado em reaver-se, reassumir-se. Tom, prostra-se de bruços na laje seca, com o sol a absorver-lhe a água do banho, não ousa quebrar aquela magia, não ousa adentrar a cena. Mantém-se à orla, como quem admira, suspenso no tempo, uma tela famosa.
Afadigada do aguardo, lá da varanda, Blanche desata a gritar, arreliada já. Tom desperta da hipnose e conclama o púbere, que também volta a si. Arrastado à laje com airosidade, se enxuga desajudado, e com ânimo ímpar se escora no amigo para vestir-se e voltar.
Retornam silentes, porém perturbados, cada qual por seus motivos, quando Blanche os avista e admoesta irritada: o almojantar passa do ponto. O primordial ato de Tom, para acalmar-lhe os sobressaltos, é correr cachimbar, perdidão em dúvidas, suas lisérgicas e acalantadas cascas de bergamota.
Após a minguada refeição, devido ao desapetite, egressa-se ligeirinho, afobado, deixando a cargo de Blanche realocar o rapaz à tulha, para o descanso noturno. O menino cantarola, já na trilha, e ela percebe a atmosfera festiva... nada cita, apenas compreende que a ablução passará a ser diária, por fins terapêuticos. 

19.1.14

Blanche 45: O fim da jornada

Com o advento de Tom à Montanha dos Caprinos, o garoto ferido persevera nos relatos, dia após dia, no decurso do “almojantar”. Evasivo e silente, Tom arraiga-se às proximidades da tulha, estimulado pelo intuito de atinar a estoica façanha.
Gesticulando com trejeitos de agonia, e aguardando a tradução por Blanche, ia o menino narrando cada etapa, cada dia da madrasta aventura na brenha de volume impotente no tudo e no nada. O respirar ofegante, o embargamento de voz, denunciavam a veracidade profunda daquele relato:
E então, agora sem a salvaguarda do estrepolento cão a latir com furor, o abnegado grupo acolitou morro acima e enveredou fatigante, por um monótono ribeiro. Portando bordunas, distendeu-se lentamente, devido ao catre do ferido, naquela opulenta natureza selvática.
Abduziram-se da fumaça, dos rastros e ruídos peculiares dos errantes e ameaçadores silvícolas isolados. Eles impõem respeitável fama de canibais e nutrem rancor mortal a qualquer outro grupo, vivendo em constrição, ainda no período neolítico.
Porquanto, não mais se depararam com cabaças quebradas, cestos de palha rustidos, escória de ocas e temíveis tacapes ornados, que os deixavam inquietos e apavorados. A fobia de emboscadas já não lhes espreitava com ardor, estando o som  dos borés cada vez mais distante.
Após enrolarem um morro abrupto, foram completamente embriagados pelo tinido da sineta da capela... era proclamação de óbito no vilarejo. Gritaram e saltitaram assanhadinhos, à borda do abarrancamento com fundas gargantas de rochas a repeli-los.
Foram impulsionados por aquele providencial retumbar, vindo espaçadamente de trás do maciço. O som lhes era íntimo, pois ouviam-no constantemente da reserva. Uma réstia de esperança percorreu seus frágeis corpos surrados naquela tardinha abafada; a caminhada passou a render consideravelmente.
Quando o ribeiro se afinou, transmutando em regato, montaram bivaque debaixo de uma espessa  e encarnada moita, de odor inebriante. Com crassas folhas de inhame, angariaram peixinhos minúsculos e girinos, engolindo vivos, sem piedade ao paladar.
Nuvens colhiam espaço no céu grafite, em meio à noite foram despertos pelo assopro impetuoso do vento, que varria folhas secas, assoviava e rugia na encosta, chacoalhava a vegetação, anunciando iminente temporal.
Alarmados bramidos de feras com hábitos noturnos ecoavam, desencadeava-se a busca por abrigo na flora pródiga, com as estropiadas nuvens indecifrantes a avolumarem-se. Os incomensuráveis  insetos de vargeados lamacentos ecoavam em sinfonia.
Foi o catadísmico aguaceiro da jornada: estreado por amplos granizos, que cingiam a pele e roçavam a densa moita, seguiu-se então a intempérie elétrica, com raios cintilantes e trovões estridentes, atuando numa luta titânica.
Passado o horror, um fino e persistente chuvisqueiro acompanhou-os em suplício gelado até o alvorecer. Com árvores inferiores, desvencilharam-se mais fluentemente e beiradejaram a encosta, sugando suculentos gomos de cana de açúcar.
Foi quando astuciosamente romperam a pastagem: lá estava possivelmente o antigo chão sagrado dos ancestrais. Haviam caminhado cerca de quatro horas, pelos cálculos de Tom. Foi quando apregoaram pelo ajutório de Blanche.

Blanche 44: E comeram o cão

O enfermo hóspede de Blanche continua o relato visceral: neste quase verão, a chuva esteve persistente, ora brava e rápida, ora fina e gelada, incomodando os meninos perdidinhos. Nas tempestades elétricas, onde raios e trovões pareciam digladiarem-se constantemente, o medo sobrepunha-se ao desconforto.
Muitas madrugadas gélidas e encharcadas passadas ao pé de grandes árvores, impossibilitaram o sono dos demais. Ele próprio vivia apenas em sobressaltados cochilos devido à inquietante dor, pela falta de devido repouso.
Abrigos ruins, urdidos com meras folhas de palmeiras, o aperto da fome pela ausência de caça, os intensos e constantes gemidos do líder, deixavam o grupo cada vez mais lúgubre.
A dificuldade em fazer fogo era imensa, na falta da providencial pederneira. Poderiam inclusive, assar bananas verdes, pois há algumas moitonas de bananeiras à beira do regato, de quando em quando. 
Evitando ataques dos algozes mosquitos, carrapatos, formigões e marimbondos, untavam-se em argila bem espessa, para seguir arrastando o ferido. Foram perdendo os adornos, inclusive o sagrado dente de suçuarana que carregam no septo nasal.
Túnicas, tangas, diademas, pulseiras e colares, assim como os brincos de penas, foram extinguindo-se pelas infindas trilhas sinuosas e escorregadias. A exaustão apenas permitia repor as obrigatórias e lindas tornozeleiras, trançadas com emplumação.
Sem veneno para a zarabatana, perdiam pequenos veados, capivaras, pacas, ouriços, macacos, quatis, gambás, peixes e muitas aves. Clavas improvisadas quase não surtiam efeito, devido à imperícia no uso.
Os frutos ainda estavam mal granados, de mal com eles, restando palmitos, cana de açúcar, coquinhos e jatobás, que por vezes, levavam consigo. O mel para o ferido, extinguira-se gradualmente. As cascas e raízes eram amargas e arranhavam a garganta, causando por vezes, dores abdominais.
Um pressentimento inexplicável acelerou a marcha tormentosa, ao primeiro som penetrante da flauta longínqua dos índios isolados. As contingências desalentosas embargavam o esforço ingente pela alegria, apesar da exuberância local.
Macacos de várias espécies faziam travessuras na copa das árvores, mães carregavam bebês às costas, saltando distâncias incríveis, liderados por um velho grisalho, dependurado em cipós. Avistando o quarteto, fugiam em ensurdecedora algazarra.
Pássaros agitados, de todas as nuances de cores, e de tamanhos diversos coalhavam o céu, com cantos dos mais variados timbres e entonações. Seus ovos nos ninhos eram chupados fervorosamente pela equipe esfomeada.
Um furinho com uma pedra, bem de jeito, na ponta do ovo, e a retirada das lasquinhas de cascas... delicado como quem cuida de neném. Então é só sorver, engolindo depressa para afugentar o mal gosto.
Certa manhã, com o grupo já em marcha, um rebuliço invadiu o esplendor selvagem do regato. O cão, em bravura, enfrentou sozinho um grupo de caititus, em sinfonia grotesca, enquanto os garotos se evadiam com a maca.
A brutalidade das cabeçadas, mesmo durando poucos minutos, rendeu-lhe rasgos medonhos. Alcançou seus donos exausto, pingando sangue; a judiação incomodou a ponto de ser sacrificado.
Num rompante, a clava atingiu-lhe providencialmente o crânio já vermelho... último grunhido selou os pormenores da catástrofe, enquanto estrebuchou por míseros segundos.
Amarfanhados e taciturnos, os meninos friccionaram estrategicamente um graveto até obtenção do fogo. Conseguiram um magro e repugnante churrasco fúnebre; em último e providencial auxílio canino, encontravam-se agora esfaimados.